1.3.06

Pontos de Fuga

Esta é a minha primeira contribuição semanal para O Insurgente, depois do amável convite que me foi feito e que em boa hora aceitei. O nome da coluna, que tem pouco de liberal, é Pontos de Fuga. A alusão à minha casa é evidente, mas a verdade é que o nome foi pedido de empréstimo. Neste caso, ao Graham Greene, de quem gosto muito. Ou melhor, ao tradutor brasileiro do Greene que assim lhe baptizou o segundo volume da autobiografia. Vamos a isso?


A Revisão Impossível
De entre as listas de desejos para o ano de 2006, vários blogues mais ou menos liberais expressaram o desejo de que se procedesse a uma profunda revisão da nossa Constituição (CRP). É por isso que posso presumir que, ao contrário de grande parte das pessoas mais ou menos próximas do liberalismo que me estão a ler neste momento, sou dos poucos que se opõe à revisão da CRP. Essa oposição não se fundamenta em nenhuma simpatia socialista ou socializante, que repudio, mas sim no facto de, lidas as centenas de artigos daquele texto, mais o seu prólogo esclarecedor, me parece de todo impossível que a CRP possa permitir mais revisões. Ao arrepio das melhores constituições (nem sempre escritas), a nossa lusa Lei fundamental decidiu assentar em pressupostos ideológicos bastante firmes e solidificados numa determinada e grande margem da sociedade portuguesa pós-revolução. E tais pressupostos, devidamente espelhados no prólogo da CRP, ditaram uma organização política, administrativa e judicial marcada essencialmente no sentido de encorpar a sociedade socialista pretendida. Não é pois, apenas, o extenso rol de Direitos Fundamentais Económicos, Sociais e Culturais que se espalham pelo texto constitucional a firmar o traço socialista e colectivista da CRP. Veja-se, por exemplo, a forma como está pensada a organização económica do país, ou até os checks and balances da organização do poder político para se constatar como todo o texto comunga da mesma veia socializante.

Ora, se assim é, compreendo perfeitamente a exigência de respeitados constitucionalistas de que esta CRP tenha limites materiais de revisão, cujo respeito se torna essencial para que, dentro do esquema constitucional existente, as coisas possam, de alguma forma, bater certo e ter sentido. Da mesma forma que não é deitando açúcar no mar que teremos água doce, também não é revendo e liberalizando esta CRP que poderemos alcançar um texto satisfatório, sob pena de ficarmos com um texto agridoce, fruto dos consensos possíveis, e gerador de equívocos desnecessários e provocados pela distorção de normas conflituantes de igual valor constitucional.
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Perante este triste quadro, e enquanto não se cria a consciência de que esta CRP não serve os interesses das pessoas, não tenho grande esperança de que possa ser alcançado um texto suficientemente próximo do que entendo dever ser uma constituição. Enquanto for tabu a substituição deste texto, parece-me que tudo continuará na mesma, por muitas revisões que se empreendam. E o pior é que o tempo vai escancarando as debilidades constitucionais, provocando apenas um sorriso tímido por entre os defensores desta permanência constitucional, de tal forma que a CRP é actualmente a missa de domingo para os católicos não praticantes: acredita-se mas não se aplica. Há pior para uma Lei fundamental do que esta complacência?

Imaginando que era possível o consenso necessário para se operar uma substituição constitucional, nem por isso os sinais que nos chegam são suficientemente claros no sentido de acreditar que o novo texto pudesse vir no sentido que os liberais podem eventualmente desejar. Uma boa constituição, tanto quanto eu a entendo, parte do pressuposto que o interesse público visado pelo Estado nem sempre corresponde ao interesse geral, mas sim à forma como os indivíduos decisores, no âmbito das suas esferas de decisão, regidas pelos seus próprios interesses e valores, encaram o dever ser social, pelo qual se sentem responsáveis mas perante o qual assumem um grau de responsabilidade bastante inferior ao dos indivíduos que gerem o seu destino.

Esta desmistificação do Estado, por intermédio da desacralização da sua superioridade em definir o interesse público tem como consequência evidente a conclusão de que o Estado condiciona as suas atribuições com base em políticas mutáveis e instáveis, conduzindo a um desfazimento evidente entre o que diz ser o interesse público e aquilo que efectivamente interessa aos cidadãos. Ganha, pois, novo relevo o princípio da subsidiariedade da actuação estadual e do desenvolvimento dos corpos intermédios e assume-se o fim do monopólio estadual da titularidade e gestão dos interesses gerais.

Se assim é, como deve ser pensada uma Constituição do futuro? Inspirados por uma concepção nomocrática e entendendo que a Constituição, enquanto modelo de organização do Estado deve conceber o interesse público como aquele que beneficia os objectivos gerais e de todos e não os objectivos sectoriais e particulares, bem se vê que uma nova Constituição deve ousar sair dos espartilhos do politicamente correcto. Ela própria não pode ser fruto, sequer, de um interesse majoritário, ao serviço da ideologia e do sonho de um Governo que temporariamente está em funções, mas sim de um verdadeiro interesse consensual e permanente, não confundível com o interesse governamental. Isso implica, necessariamente, a protecção dos direitos e liberdades individuais, a protecção das minorias e a limitação e qualificação da intervenção estadual.

A nova constituição não pode pretender impor uma determinada consciência política ou social aos portugueses, sob pena de, daqui a 20 anos, estarmos novamente a debater os mesmos problemas e a pugnar por rupturas constituicionais. A nova constituição terá de ser previsível, neutra, transparente, imparcial e confiável e prescindir de ser a consagração máxima do valor da perfeição da lei, servindo precisamente, de forma programática e parcial, para a profusão do Estado Social que agora se encontra em crise. A nova constituição terá de ser a consagração máxima, isso sim, da vocação geral e universal da ordem legislativa e contribuir para a superação do paradigma da exclusividade da lei e do monopólio dos instrumentos estaduais de aplicação do direito.