Passos Perdidos
Sim, Sr. Presidente
Só poderão estar desiludidos com o Presidente Cavaco Silva os que temiam que ele destruísse o regime, ou os que queriam que ele o destruísse. Todos os outros, quer gostem, quer não, estão a ter o que estavam à espera. E o que estão a ter, é bom ou é mau?
Antes mesmo de Cavaco Silva ter anunciado a sua candidatura à Presidência da República, toda a gente analisava a campanha em função do que imaginavam ir ser a sua agenda, e do que imaginavam ir ser a sua presidência, caso, como era previsível, e como se veio a verificar, fosse eleito para o cargo. Muitos temiam o seu perfil "executivo", temendo que mais não fizesse que intrometer-se nos assuntos do Governo. Ignoraram as inúmeras declarações do então candidato, jurando não o pretender fazer, e o seu próprio passado enquanto crítico do intervencionismo presidencial de Mário Soares. Outros (entre os quais, de certa forma, me contei), por sua vez, temiam uma eventual irrelevância da sua acção. O cargo presidencial é, pela sua natureza, dado a um dilema: ou o confronto institucional, ou a inoperância presidencial. Ao dar a duas instituições (Presidente e Parlamento) igual legitimidade, faz com que de cada vez que o Presidente discorde da maioria parlamentar, se abram as portas do conflito institucional. E este é um problema ao qual um Presidente, seja ele qual for, não poderá fugir.
Cavaco não é excepção. O então candidato percebia que o país necessita de reformas. Mas sabia, como continua a saber, que até 2009 as únicas reformas que poderão avançar serão aquelas que o PS estiver interessado em fazer. Mesmo que Cavaco procure convencer Sócrates da sua necessidade, elas dependerão da vontade deste último. Cavaco não poderá fazer com que o processo reformador ande mais depressa. Ou melhor, poderia. Poderia, se dissolvesse a Assembleia, e permitisse que outro governo com um programa mais liberal tomasse o poder. Cavaco, no entanto, percebe que isto seria contraproducente, como mostra a sua referência à "importância da estabilidade". Cavaco percebe que mais um mandato legislativo abruptamente terminado antes do prazo apenas contribuiria para uma ainda maior degradação das condições de governabilidade. Percebe que isso contribuiria ainda mais para instalar na cabeça dos eleitores a ideia de que um Governo não recebe uma legitimidade para quatro anos, fiscalizada pelo Parlamento, e limitada pela lei, mas sim uma legitimidade permanentemente escrutinada, sempre dependente do favor popular e da interpretação que deste último o Presidente fizer. Percebe que dessa forma, nenhuma reforma realmente significativa poderia ser levada a cabo.
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O início do seu mandato poderá ter confirmado, aos olhos de muita gente, este receio de um Presidente sem margem de manobra. O seu "Roteiro para a Inclusão" poderia parecer, como a muitos pareceu, uma iniciativa típica de alguém sem poder, forçado e limitado a proferir algumas declarações de intenções sem qualquer efeito prático. Aqui, julgo, ter-se-ão enganado. O "Roteiro" mais não foi que uma iniciativa que visava introduzir no debate sobre as "questões sociais" um discurso que a pobreza do debate partidário refém dos telejornais deixa silencioso.
Cavaco veio dizer que o Estado não tem a capacidade para resolver todos os problemas de exclusão, e principalmente, não tem a capacidade de resolver os problemas de exclusão mais acentuados, como os associados à velhice e à desertificação. É certo que diz algo que o PSD diz há muito tempo. Que é necessário desenvolvimento económico para que a pobreza possa diminuir. Mas diz muito mais. Diz que a resolução dos problemas sociais deve ser procurada da "base para o topo". Ora, isso só acontecerá se existir a consciência de que indivíduos, famílias, comunidades, empresas, organizações de solidariedade, têm obrigações e um lugar anterior ao do Estado. Que o Estado só deve agir onde e quando os primeiros falharem. E que, no seio do Estado, deverão estar primeiro as juntas de freguesia, só depois as autarquias, só depois o Governo.
O Presidente percebe que muitos dos problemas que a sociedade enfrenta são problemas "crónicos". Problemas que permanecem junto dos indivíduos que por eles são afectados muito para além do dia em que lhes surgem. O desemprego ou a pobreza associada ao envelhecimento, por exemplo. Mais, percebe que a acção do Estado acaba por gerar à volta daqueles que quer ajudar um ciclo vicioso do qual eles dificilmente podem sair. De um interior cada vez mais pobre, vai saindo a população jovem em busca de melhores condições de vida, nas grandes cidades. Deixa para trás uma população envelhecida, que, com a saída dos mais jovens, vê a sua terra perder ainda mais dinamismo, ficando ainda mais pobre. O Estado tem de entrar em acção, enchendo a classe média de impostos, de forma a suportar os brutais encargos sociais. Isto tem como efeito quase imediato a incapacidade dessas mesmas classes médias ajudarem os seus pais quando estes entram na reforma. Paradoxalmente, o Estado, ao sobrecarregar a classe média de impostos, faz com que precise de gastar mais dinheiro, pois ela deixa de poder, por si só, suportar simultaneamente os seus encargos e parte dos encargos dos seus país já reformados. O Estado vê-se assim forçado a garantir a subsistência a mais gente, o que implica que dê menos a cada um, ao mesmo tempo que retira mais a cada um dos que contribuem para esse esforço. O que por sua vez contribui para o empobrecimento generalizado da população, acentuando a sua dependência do Estado. E daqui, nunca mais se sai.
Cavaco percebeu isto. Percebeu que deste ciclo vicioso de empobrecimento e dependência só se pode sair com um maior desenvolvimento económico. O que só será possível se os indivíduos forem mais livres. Se eles poderem ter a oportunidade de lucrar com o risco que estiverem dispostos a correr. E percebeu também que, em vez de concentrar no Estado o auxílio aos que ficam para trás nessa corrida, se deve libertar os indivíduos para que eles possam desempenhar um papel nesse auxílio. Que se deve criar um sistema fiscal que não penalize as famílias de classe média, para que estas não abandonem os seus idosos ao cuidado de um Estado que nem de si próprio sabe cuidar. A mobilização de "boas vontades" de que o Presidente fala só significa algo se significar isto. Se significar a libertação dos indivíduos, famílias e associações voluntárias, para ajudarem aqueles que possam ajudar.
E Cavaco certamente percebeu que, num país domesticado pelo Estado, num país que depende do Estado, este tipo de discurso só poderá ser aceite pelas pessoas se elas passarem muito tempo a ouvi-lo. Cavaco tem dez anos para o fazer. Já no discurso proferido no 25 de Abril o Presidente parecia ter aberto uma porta para que alguém adopte este discurso, parecia ter sido um primeiro passo dado pelo Presidente, nesse sentido. Este "Roteiro para a Inclusão" parece ter sido o segundo. E mesmo que não seja esta a intenção de Cavaco, o que é verdade é que o seu discurso abre um caminho para quem quiser apresentar aos eleitores um modelo de sociedade diferente. Uma sociedade onde eu possa ter uma vida melhor, mas também o meu vizinho. Onde me caberá também a mim ajudar o meu vizinho, até porque terei mais condições para o poder ajudar se tal for necessário. A recente proposta do PSD para a área da Segurança Social, por muito limitada que seja, é o primeiro fruto desta iniciativa presidencial.
Também no início do seu mandato, o Presidente mostrou-se convicto da necessidade de maiores "consensos" entre os principais partidos quanto às reformas a serem aplicadas. Já na campanha, garantira que a sua intervenção apenas se daria nas áreas onde há consensos na sociedade portuguesa. Tal como o seu discurso sobre a pobreza, era para muitos uma prova do vazio que seria a acção de Cavaco, da sua irrelevância para a resolução dos problemas do país. Mais uma vez, foi mal interpretado. A acção de Cavaco não se limitaria ao que já era consensual. Centrar-se-ia, isso sim, em áreas que todos consideram estarem degradadas, em crise, e em procurar que, para elas, Governo e oposição chegassem a um acordo que dure mais que uma legislatura. Independentemente dos méritos ou deméritos do seu conteúdo, o pacto para a área da justiça mostra qual o significado das palavras do Presidente, mostra quais as suas intenções. Uma eventual reforma do sistema político também o será certamente.
Claro que continua a depender da vontade do Governo. Onde este não quer avançar tanto, Cavaco nada pode fazer. Mas mesmo nesses casos (a Segurança Social, por exemplo) a acção presidencial permite que a oposição apresente propostas alternativas que, como a do PSD para essa área, apresentam um discurso até há bem pouco tempo praticamente ausente do debate partidário.
O Presidente deve, no entanto, ter algum cuidado. Os rumores que correm, de uma reforma do sistema político que contempla a adopção de círculos uninominais, deveriam inspirar alguma prudência a Cavaco. Uma mudança como essa irá provocar uma fortíssima contestação dos partidos mais pequenos. O Presidente não pode permitir, como permitiu em relação ao pacto para Justiça, que uma reforma do sistema político seja combinada única e exclusivamente na escuridão dos corredores da residência do Primeiro-Ministro. Se a reforma eleitoral for feita em segredo, e não no parlamento e na "opinião pública", o seu conteúdo estará minado à partida, os seus objectivos serão frustrados, e o próprio Presidente perderá muita da sua credibilidade enquanto árbitro do conflito político, que notoriamente pretende ser. Por todas as razões e mais algumas, o Presidente deve estar muito atento a esta questão. Algusn dos argumentos dos opositores desta proposta são argumentos válidos. Desvalorizá-los terá como resultado uma maior descredibilização da classe política. O inverso do que uma reforma do sistema político pretende.
O Presidente não deve, para além do mais, deixar de prosseguir na realização de iniciativas como a do "Roteiro para a Inclusão". Não deve deixar de, sem se intrometer na agenda e na actividade do Governo, marcar a sua própria agenda, mostrar as suas próprias preocupações, trazer para o debate partidário um discurso que este tem marginalizado. Só assim poderá contribuir para a credibilização da actividade política, e para a futura realização de reformas em Portugal, sem provocar um conflito institucional com o Governo, que não contribuiria para outra coisa que não o inverso do que o Presidente pretende.
por Anónimo @ 10/02/2006 05:38:00 da tarde
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