23.3.06

O homem que era quinta feira

When the truck stopped, they told us to get off in groups of five. We immediately heard shooting next to the trucks. (…) About ten Chetniks [sérvios bósnios] with automatic rifles told us to lie down on the ground face first. As we were getting down, they started to shoot, and I fell into a pile of corpses. I felt hot liquid running down my face. I realized that I was only grazed. As they continued to shoot more groups, I kept on squeezing myself in between dead bodies.
O Miloševic nacionalista tornava-se agora no “monstro,” responsável político por um projecto de extermínio selectivo das populações não sérvias dos territórios a anexar. Mas é aqui que surgem dúvidas e questões de resposta complicada mas crucial para o apuramento das responsabilidades. O massacre de Srebrenica foi prontamente classificado como “genocídio.” Para além das dificuldades semânticas que a utilização do termo coloca e até das dificuldades em determinar com exactidão o número de vítimas, há uma questão crucial: qual a responsabilidade política de Miloševic?

Em Agosto de 1994, Miloševic terá compreendido que não conseguia controlar Karadzic. Cortou relações institucionais com os sérvios bósnios e impôs-lhes um embargo. Se o embargo foi ou não efectivo é difícil de avaliar. Como em tantas outras coisas, a responsabilidade cabe às Nações Unidas: o número total de monitores encarregues de avaliar o embargo fronteiriço era manifestamente insuficiente. Do mesmo modo, quando os sérvios bósnios atacam Srebrenica, um ano depois da ruptura política com Miloševic, esta área era considerada uma “zona segura” pela ONU e supostamente protegida pelo contingente da UNPROFOR. Não existe um argumento aceitável susceptível de estabelecer a responsabilidade política de Miloševic nos massacres de 1995. Quanto a Karadzic e Mladic, esses sim responsáveis políticos e militares pelo sucedido, permanecem com paradeiro “desconhecido.”

O culpado: o sossego hipócrita das vidas tranquilas
O desempenho do Tribunal Criminal Internacional para a Jugoslávia (ICTY) é, no mínimo, equívoco. O comportamento deste tribunal levanta dúvidas quanto à sua imparcialidade e alimenta suspeitas de instrumentalização política. Entre os principais líderes políticos da ex-Jugoslávia, Miloševic esteve “demasiadamente” só no tribunal de Haia. Franjo Tudjman, não menos nacionalista e provavelmente responsável por crimes de guerra, morreu sem ser incomodado pelas instâncias jurídicas internacionais.

Os croatas usaram os mesmos “métodos” que os bósnios sérvios — na ofensiva da Krajina, em 1995, sob a liderança de Ante Gotovina. No entanto, só em 2001 é que o ICTY “conseguiu” acusar Gotovina de crimes de guerra, enquanto que Mladic e Karadzic há vários anos que são acusados de crimes de genocídio.

O caso de Alija Izetbegovic, o líder bósnio muçulmano que declarou a independência da Bósnia-Herzegovina em 1992, contra a oposição dos sérvios bósnios, é ainda mais interessante. Izetbegovic, que também estava sob investigação do ICTY, acusado de responsabilidades no massacre de civis, morreu em 2003, sem que o tribunal de Haia tenha conseguido passar do inquérito.

É pena porque Itzetbegovic, um defensor do pan-islamismo com fortes apoios iranianos e que recusou o acordo elaborado em 1992 pelo embaixador José Cutileiro, conhecido como o “acordo de Lisboa,” teria seguramente coisas muito interessantes a revelar. Em Novembro de 2001, o Wall Street Journal publicava Al Qaeda’s Balkan Links, um artigo fundamental para se compreender as implicações geopolíticas do conflito balcânico (destaques adicionados):
For the past 10 years, the most senior leaders of al Qaeda have visited the Balkans, including bin Laden himself on three occasions between 1994 and 1996. The Egyptian surgeon turned terrorist leader Ayman Al-Zawahiri has operated terrorist training camps, weapons of mass destruction factories and money-laundering and drug-trading networks throughout Albania, Kosovo, Macedonia, Bulgaria, Turkey and Bosnia. This has gone on for a decade. Many recruits to the Balkan wars came originally from Chechnya, a jihad in which Al Qaeda has also played a part.
A embaixada bósnia em Viena emitiu um passaporte para o “cidadão” Osama bin Laden; os “libertadores” kosovares são também agricultores de reputação internacional (destaques adicionados):
The overnight rise of heroin trafficking through Kosovo —now the most important Balkan route between Southeast Asia and Europe after Turkey— helped also to fund terrorist activity directly associated with al Qaeda and the Iranian Revolutionary Guard. Opium poppies, which barely existed in the Balkans before 1995, have become the No. 1 drug cultivated in the Balkans after marijuana. Operatives of two al Qaeda-sponsored Islamist cells who were arrested in Bosnia on Oct. 23 were linked to the heroin trade, underscoring the narco-jihad culture of today’s post-war Balkans.
E o papel dos EUA em tudo isto?
It was not until 1995 that the Clinton administration was forced to start pursuing the Islamist network in the Balkans. Not quite a month after the Dayton accords had been signed in November 1995, an influx of Iranian arms came into Bosnia with the apparent tacit approval of the administration, in violation of U.N. sanctions. While publicly pressing Bosnian President Alia Izetbegovic to purge remaining Islamist elements, the administration was loath to confront Sarajevo and Tehran over their presence.
Madeleine Albright bem avisou que os EUA eram a “nação indispensável.” De facto, sem a prestimosa ajuda da incompetente administração Clinton, um santo do multilateralismo institucional, dificilmente o jihadismo teria alcançado as proporções que tem hoje, como maior ameaça global à segurança internacional. Claro que William Clinton, terá visto papeis, mas não sabia; tal como fumou mas não inalou.

É ainda necessário considerar a questão dos custos da justiça. Ao longo dos treze anos de funcionamento, o ICTY já gastou mais de 1,2 biliões de dólares. Até agora foram proferidas 51 sentenças: 43 condenações e 8 absolvições. Isto significa que cada sentença custou, em média, 23,5 milhões de dólares. Acha caro? Num artigo publicado na edição de Março/Abril da Foreign Policy, Helena Cobban apresenta números comparáveis para o Tribunal Criminal Internacional para o Ruanda (destaques adicionados):
As of November 2005, the ICTR had handed down judgments for only 25 individuals. More than $1 billion has been spent on the tribunal so far, or about $40 million per judgment. By contrast, South Africa’s truth commission processed 7,116 amnesty applications for less than $4,300 per case. In postconflict Mozambique, programs to demobilize and reintegrate thousands of former combatants cost about $1,000 per case. Rwandan community leaders aren’t shy about saying that the more than $1 billion the United Nations has so far poured into the ICTR could have been better spent.
Em discurso proferido na Goldman Sachs de Londres, em 6 de Outubro do ano passado, Carla del Ponte, procuradora do ICTY, afirmava (destaques adicionados):
Actually, an international organization tasked with bringing peace, security and justice costs money, and where are the profits? Preventing wars or bringing justice doesn’t fill the UN or anybody’s bank accounts. However, it creates savings. They are difficult to measure in Euros, dollars or pounds, but they are there. How do you quantify the human suffering that did not happen because a conflict was avoided? And the destruction? And the victims’ desire for revenge which is so often the origin of new cycles of bloodshed? Those gains are immaterial, but they are worth more than any company’s yearly earnings!
Vale a pena ler o artigo de Helena Cobban, para se dispor de uma avaliação lúcida da (in)capacidade dos tribunais internacionais em cumprir tão altos objectivos, a troco de tão ridículas ninharias...

A verdade é que as instâncias jurídicas internacionais não fizeram justiça — Miloševic morreu sem ouvir uma sentença. A “selectividade” dos procedimentos criminais do tribunal de Haia não contribui nem para a paz, nem para a estabilização balcânica, pelo contrário: acentua a assimetria das responsabilidades sérvias e ajuda a criar uma imagem diabólica de um —com a correlativa desculpabilização de muitos.

O nacionalismo sérvio nunca foi tratado em pé de igualdade com o nacionalismo croata, ou com o nacionalismo albanês. Este último, consubstanciado no objectivo da “grande Albânia” está prestes a receber mais uma ajuda do inconsciente mandarinato europeu: o The Economist sugere que as negociações para um eventual acordo de associação entre a Sérvia e a União Europeia, a reiniciar no próximo dia 5 de Abril, poderão levar a uma exigência de independência do Kosovo.

Esta ideia tem tanto de imoral como de perigosa; o Kosovo é uma parte constitutiva da identidade histórica e geográfica da Sérvia e a eventual independência irá acentuar o ressentimento dos sérvios. A “independência” é um manto diáfano de fantasia delirante, com que os burocratas comunitários pretendem ocultar a garantia de sucesso de uma luta semelhante àquela que foi encetada pelos bósnios sérvios. Com uma diferença importante: a luta pela independência do Kosovo foi classificada como jihad pela Conferência Islâmica.

Miloševic está morto e enterrado. Muitos dos impunes e alguns politicamente iludidos continuam por cá. Nem que seja só por isso, são certamente mais perigosos.