1.2.06

O "legado Thatcher" e as estatísticas

  1. 1979: 39,2%
  2. 1980: 45,1%
  3. 1985: 47,8%
  4. 1990: 39,9%
A despesa pública resultante das funções normalmente associadas à designação "Estado-previdência" resulta da soma das componentes dos chamados "bens de mérito" (saúde, educação, habitação social) e das transferências de rendimento para as famílias. Os valores para o Reino Unido (em % do PIB) nos momentos inicial e final do período de governação de Margaret Thatcher são os seguintes:
  1. 1979: 25,5%
  2. 1990: 25,7%
Estes dados permitem algumas constatações imediatas:
  1. Tanto a despesa pública total como a despesa pública com as funções associáveis ao "welfare state" aumentaram, em percentagem do PIB, entre 1979 e 1990;
  2. Os anos de 1979 a 1990 devem ser divididos em dois períodos de governação: 1979—1985 e 1985—1990;
  3. A despesa pública total cresceu substancialmente no primeiro desses períodos e diminuiu substancialmente no segundo.
As estatísticas sugerem que a governação Thatcher terá sido pouco eficaz na prossecução dos objectivos fundamentais do programa político do partido Tory. Esta sugestão é completamente falsa.

Thatcher mudou profundamente o Reino Unido. Eleita em 1979, assumiu a responsabilidade de reformar uma economia esclerótica, dominada por poderosos sindicatos e num estado geral de desmoralização e de crescente desemprego. Foi responsável por uma política consistente de reprivatização não só de empresas mas também de outros activos (por exemplo a habitação social pública). Eliminou boa parte da sufocante regulação económica que limitava ou impedia a actividade empresarial.

Enfrentou a oposição e os sindicatos com uma determinação e coragem impressionantes. Só a greve do NUM (National Union of Mineworkers) durou um ano. Thatcher sabia o que estava em questão: o poder político, democraticamente eleito, contra o poder corporativo dos sindicatos. Não cedeu um milímetro e vergou os sindicatos mineiros, que acabaram por regressar ao trabalho sem ter conseguido o que pretendiam: derrubar o governo conservador. Sugiro um exercício simples: faça uma lista dos políticos portugueses capazes de suportar uma greve de uma semana, num sector com a importância do sector energético, sem ceder a reivindicações e sem se demitirem ou serem sumariamente demitidos...

Thatcher nunca foi derrotada em eleições, nunca negociou com terroristas, sobreviveu a atentados, opôs-se com sucesso à extrema esquerda anti-nuclear e favorável ao desarmamento unilateral e o entendimento que estabeleceu com os EUA em termos de política internacional foi decisivo na oposição ao comunismo.

Por que razão é que as estatísticas das contas públicas britânicas não transparecem com clareza transformações políticas tão profundas? A explicação mais provável sugere uma lição importante, a ter em conta no debate reformista português.

As dificuldades macroeconómicas entre 1980 e 1983, com a coexistência de inflação e desemprego, provocaram um significativo aumento da despesa pública "social". A tendência de crescimento do desemprego, anterior à vitória dos conservadores nas eleições de 79, foi substancialmente agravada pelas medidas reformistas e foram precisos alguns anos para que os benefícios dessas reformas se tornassem visíveis (o período 1985-1990). Tivesse Thatcher continuado à frente dos Conservadores (ou tivesse a sua orientação de política prevalecido) e provavelmente os actuais dirigentes do partido Tory não estariam a anunciar como "objectivo" a redução gradual da despesa pública para os... 40%.

O principal motivo de interesse na avaliação do "legado político" de Thatcher é que este exercício permite elucidar um problema recorrente nas discussões sobre o redimensionamento das esferas pública e privada. O problema resulta de uma hipótese implícita: a hipótese de que a redução da esfera de acção pública se traduz necessariamente numa redução da despesa pública.

Não se trata apenas de uma eventual "correlação baixa" entre esses dois objectivos: poderá haver uma incompatibilidade potencial entre eles. Se essa incompatibilidade for efectiva, então políticas públicas orientadas para um dos objectivos terão provavelmente resultados opostos em termos do outro.

A questão é fundamental para as discussões reformistas em Portugal, mas pode ser ilustrada por recurso ao caso britânico. Há alguns meses, com o partido conservador britânico envolvido na escolha de um novo líder, Daniel Finkelstein escreveu um importante artigo de opinião: A David Davis guide to fiscal strategy. Nesse artigo, Finkelstein recorreu ao exemplo das reformas na educação para ilustrar a "inconsistência de objectivos". A defesa dos chamados "cheques-educação" é uma política desejável numa perspectiva de devolução da liberdade de escolha às famílias. Porém, todas as simulações do perfil intertemporal dos custos para o Estado de uma tal política indicam que haverá um aumento da despesa pública, ainda que temporalmente limitado aos primeiros anos de aplicação. A redução da esfera de acção pública implicará, pelo menos a médio prazo, um aumento da despesa pública. Outros (e importantes) exemplos poderiam ser dados, designadamente de reformas nas áreas da Justiça e da Saúde.

Assume-se frequentemente que "reformar o Estado," reconduzindo-o às suas actividades historicamente primordiais, resultará necessariamente numa redução da despesa pública. Esta hipótese, porque falsa, pode levar a programas reformistas inconsistentes nos objectivos. Pior: pode provocar problemas semelhantes aos encontrados na tentativa de "avaliação estatística" do impacte da governação Thatcher, interpretando-se o aumento da despesa pública como um "sinal de fracasso," quando pode significar precisamente o contrário.

Para uma discussão razoável dos objectivos políticos convém manter presente (pelo menos) duas ideias básicas: nem todos os objectivos desejáveis são simultaneamente conciliáveis nem o acerto das políticas pode ser aferido por estatísticas simples.