23.2.06

O homem que era quinta-feira

"Por muito que nos custe e custe ao perigosíssimo Presidente Bush, sem os tiranos, que, para nosso bem e conveniência deles, conservam as massas muçulmanas numa relativa passividade, não escapávamos com certeza a um triste fim."

Vasco Pulido Valente, Moral de uma história, O Espectro, 03-02-2006.

Os regimes unipessoais tendem a ser instáveis, entre outras razões por uma especialmente simples: basta matar o ditador para fazer cair o regime. Tome-se como exemplo o caso paquistanês.

Pervez Musharraf pertence ao género de ditadores muito apreciados pelos “realistas:” a sonovabitch, but our sonovabitch. No advento da operação militar contra o regime taliban, também Richard Armitage e os “falcões” de Washington aprenderam rapidamente a estimar o valor estratégico do general paquistanês. Modestamente aceitam a "conveniência" do senhor general e desejam-lhe uma longa vida e muita sorte, até porque desconfiam que da longa vida dele dependerá muita da sorte do ocidente nos próximos anos.

Num momento de manifesto infortúnio, o General Musharraf pode encalhar com a testa numa bala, vinda sabe-se lá de onde. Das "massas muçulmanas" não será certamente porque essas, o Prof. Pulido Valente já explicou que estão tolhidas de medo numa sossegada passividade, como aliás podemos comprovar diariamente através da televisão. Mas a Fortuna é uma deusa caprichosa, a sorte é madraça e o que não falta no Paquistão são escolas da má sorte.

Se o hipotético encontro entre Pervez e a bala se revelar fatal para o primeiro, rapidamente teremos saudades do pânico causado pela sugestão da bomba persa. É que o Paquistão dispõe, desde há vários anos, de um arsenal nuclear inteirinho e testado. Para além dos já conhecidos negócios nucleares prêt à porter (mal) ensaiados pelo Dr. Abdul Q. Khan, há uma outra questão problemática. Se o regime cair, o arsenal nuclear paquistanês poderá, com elevada probabilidade, ficar acessível para o remanescente de trogloditas talibans, Al Qaeda e demais compagnons de route de alta montanha. O que me parece “perigosíssimo” é que a barreira que nos pode separar de um “triste fim” se resuma a uma encarnação mediana de um capacho de Kissinger.

Damon’s blurred vision
O jardim multiculturalista continua animado. Desta vez, há novidades do Gorilla(z) Damon Albarn, que prepara um musical sobre a vida no bairro londrino de Notting Hill. Albarn afirma tratar-se de uma “resposta” ao filme de 1999, que lhe terá desagradado profundamente. O filme era um xarope de baboseiras delicodoces com que Julia Roberts e Hugh Grant se lambuzavam, para deleite dos espectadores. Mas o motivo do desagrado de Albarn foi outro: a falta de “autenticidade” e a consequente “incorrecta representação da realidade multicultural” da vida no bairro londrino.

A falta de “autenticidade multi-étnica” é uma censura recorrente nas apreciações de Albarn: em Novembro do ano passado caracterizou a celebração pagã organizada por Saint Geldof como uma “asneira” pelo mesmo motivo. O objectivo político do Live8 ficou perfeitamente resumido na imagem de um maltrapilho arrastando-se em frente às câmaras de televisão, berrando “give us your fockin’ money!” Neste ponto o homem tem razão: estamos em presença de uma indesmentível "prática específica" da decadente cultura ocidental.

Damon Albarn "sente" o indescritível sofrimento causado às minorias cinematograficamente excluídas pela violenta supressão fílmica da diversidade étnica. Por isso denuncia Notting Hill como um crime de lesa multiculturalismo. No lugar dele processava os produtores — esse velhacos responsáveis por tamanha violação do princípio do “igual reconhecimento.” Com a reparação judicial — quase certa, dado o acquis comunitarista — encenava um musical baseado na mesma história, mas realmente autêntico e cheio de sensibilidade multi-étnica. O papel usurpado pelo snob Hugh Grant, poderia ser atribuído a um corpulento rastafarian e em vez da menina Julia uma actriz japonesa, que, recorrendo às técnicas kabuki transmitiria aos espectadores o seu fascínio pelos piercings do jamaicano.

A avaliar pela excitação causada pelo anúncio de uma simples intenção, a Inglaterra "multiculti" aguarda com ansiedade pela estreia do musical de Albarn. Eu, que só com a administração prévia de uma epidural era capaz de voltar a ver o filme, até estou a pensar comprar o DVD.

O violoncelo da pobreza
Um dos directores da Associação Guilhermina Suggia foi entrevistado na passada segunda feira, num programa matinal da Antena 2. A associação dedica-se à preservação da memória da mais notável violoncelista portuguesa, que morreu no Porto em 1950. Além da memória do seu virtuosismo, Suggia deixou em legado dois violoncelos. Um Montagnana, confiado à Câmara Municipal do Porto, que então tutelava o Conservatório de Música da cidade; e um Stradivarius, confiado à Royal Academy of Music em Londres. As instruções testamentárias determinavam a venda dos violoncelos e a constituição de fundos de capital com as receitas daí resultantes (o valor de mercado dos dois instrumentos era idêntico). Os fundos eram destinados à atribuição de prémios aos melhores alunos de violoncelo.

O Stradivarius foi vendido em Londres no ano de 1951 através da W.E. Hill & Sons, por 8 000 libras. Os vendedores declinaram a comissão no negócio, de forma a maximizar a dotação inicial do fundo constituído pelo Royal Academy of Music. O prémio começou a ser atribuído em Londres no ano de 1952. Até hoje foram atribuídos 58 prémios. Entre muitos outros violoncelistas, Jacqueline du Pré financiou parte dos seus estudos através deste prémio.

Quanto ao Montagnana, a Câmara Municipal do Porto apropriou-se do violoncelo, atribuindo-lhe um valor irrisório face ao provável valor de mercado. Ao longo de mais de meio século, o Estado português atribuiu... seis prémios. O violoncelo foi colocado no Museu Soares dos Reis. Aparentemente, os zelosos funcionários responsáveis por esta decisão supõem que um excelente instrumento musical serve para ser visto. A sugestão de tocá-lo para que possa ser ouvido não lhes ocorreu, ou então acharam-na “perigosa.”

As duas histórias reflectem uma diferença abissal de honestidade e de respeito pelos compromissos e pelas vontades individuais, livre e legitimamente expressas. Estes valores morais e características da conduta humana são fundamentais para a criação de “capital social” — o conjunto de normas informais que estimulam a cooperação e diminuem os “custos de transacção.” Por esse motivo, o capital social constitui um factor fundamental para a geração de riqueza. Tudo isto poderia ser apenas mais um triste episódio, mas os diferentes destinos dos violoncelos de Suggia ilustram algumas das causas da enorme pobreza portuguesa.