6.4.06

O homem que era quinta feira

"Ce n'était pas des négociations. Tout est encore ouvert: il n'y a pas eu de propos laissant entendre qu'une abrogation était possible ou impossible. Vu le grand flou qui existe pour savoir qui est le pilote du bateau France, il a été décidé que les parlementaires sont envoyés comme éclaireurs pour chercher une issue à cette crise."
É interessante analisar as curiosas concepções de justiça e de legitimidade política envolvidas nesta declaração. A identificação entre justiça e poder, a afirmação clara da superioridade da força da "rua” sobre a legitimidade política dos representantes eleitos e a (nada subtil) convicção que quem realmente manda no bateau France é ele, Mr. Thibault, capitão de sindicalistas, estudantes, deputados, ministros e demais ralé embarcadiça.###

A aliança entre sindicatos e estudantes nas barricadas da oposição ao CPE tem sido encarada como natural. Na verdade trata-se de um dos aspectos mais curiosos da crise social em curso. Os estudantes pretendem evitar o CPE, enquanto que os sindicatos defendem os empregos e as regalias associadas aos contratos de duração indeterminada (CDI). Não se tratam de aspectos distintos da mesma luta. Os interesses estratégicos de uns e de outros são opostos: na barricada francesa, os estudantes estão a ser enganados e manipulados pelos sindicatos. Para que se perceba como e porquê, é preciso identificar a origem política da situação actual.

De acordo com as estatísticas da OCDE, entre 1990 e 2004 as taxas de participação laboral foram sempre mais baixas em França do que na média da UE-15. No mesmo período de tempo, a taxa de desemprego francesa foi sistematicamente mais elevada do que a média europeia, oscilando quase sempre entre os 9 e os 12%. A percentagem de desempregados de longa duração — aqueles que estão no desemprego por períodos consecutivos superiores a seis ou a doze meses — também aumentou durante o período considerado.

No entanto e apesar da persistência do elevado desemprego estrutural, entre 1979 e 2004 o salário mínimo francês cresceu sistematicamente, o salário real dos trabalhadores com contratos estáveis cresceu mais do que o dos restantes trabalhadores e o número médio anual de horas de trabalho diminuiu quase 18%.

Estas estatísticas laborais e salariais reflectem quantitativamente o forte dualismo que caracteriza hoje a sociedade francesa e que se traduz numa enorme assimetria entre o emprego “protegido” e os contratos de trabalho temporários. A origem da rigidez laboral que protege o emprego de alguns é um complexo emaranhado de legislação que nenhum político se atreve a desbastar. Conforme explica Gilles Saint-Paul, é esta barreira política que divide o mercado de trabalho entre insiders — aqueles que beneficiam dos privilégios gerados pelo proteccionismo da legislação laboral; e outsiders — os que apenas têm contratos de duração temporária.

Os insiders são os grupos sociais privilegiados, fundamentalmente funcionários públicos e a elite político-administrativa, simultaneamente criadores e beneficiários do socialismo estatizante e centralista que tem sido a característica dominante da política económica francesa da V República e que foi prosseguido com especial determinação desde a eleição de François Mitterrand, em 1981. São politicamente organizados — nomeadamente através dos sindicatos — e defendem o seu padrão de vida confortável com o egoísmo terminal da Pompadour: après nous, le déluge.

Os outsiders são o resto da sociedade, sujeita a uma incerteza e instabilidade muito maiores. Com menor capacidade de reivindicação política, têm normalmente contratos de trabalho temporários e salários médios mais baixos. São eles que suportam as consequências adversas da rigidez laboral: o aumento do tempo de duração do desemprego e o menor crescimento económico, com a consequente redução na criação de emprego. Entre os franceses que se encontram no início da vida activa predominam os outsiders: o The Economist desta semana refere que cerca de 64% dos franceses entre os 15 e os 24 anos que têm emprego estão sob contrato de trabalho temporário.

A legislação laboral não é obra do acaso. É o resultado da contínua pressão política dos sindicatos. Sem o proteccionismo legal não seria possível aos insiders sustentarem a sua renda económica — os salários e regalias auferidos pelos detentores de emprego “seguro,” superiores ao que estes grupos sociais beneficiariam sem a distorção política do mercado de trabalho. Os sindicatos funcionam articuladamente como uma espécie de monopólio dos que têm emprego garantido. Minimizado o risco de desemprego, têm um incentivo a pressionar o poder político para que este legisle de forma a aumentar a protecção efectiva dos respectivos membros. Os aumentos da remuneração salarial, particularmente dos salários mínimos, a redução do esforço de trabalho — por exemplo através da redução dos horários de trabalho, ou até mesmo o impedimento e reversão das eventuais privatizações, que retirariam poder negocial aos sindicatos, são as estratégias mais frequentes.

Isto significa que os estudantes estão do lado errado do confronto político. Enquanto a barreira de legislação perdurar, os outsiders serão forçados a saltar de um contrato temporário para outro. Alguns conseguirão o “grande prémio” — tornarem-se insiders; a maioria não: a lógica do privilégio impede a sua universalização.

O erro estratégico dos estudantes parisienses reside na incapacidade em compreenderem que deveriam exigir ao poder político a extinção dos privilégios conferidos às oligarquias sindicais. Não só não lhes ocorre que esses privilégios são a origem dos seus problemas, como servem de “carne para canhão” nas barricadas, ao serviço dos interesses socialistas de um sindicalismo explorador dos trabalhadores.

Capitalism is a loaded gun
A generalidade dos economistas está de acordo quanto aos efeitos perniciosos da regulação laboral. Isto não significa que a desregulação contemplada no CPE seja necessariamente benéfica: alguns economistas sublinham as possíveis consequências não intencionais desta desregulação. Um dos maiores críticos do CPE, Olivier Blanchard, argumenta que a medida poderá resultar num aumento da rotação laboral (job turnover) entre os outsiders porque a redução dos custos associados à cessação do contrato de trabalho para as empresas empregadoras reduzirá o incentivo destas a propor contratos duradouros aos trabalhadores. A aprovação do CPE induziria um aumento do desemprego e da rotação laboral. A maior instabilidade profissional sentida pelos outsiders teria reflexos negativos sobre a produtividade do trabalho e sobre o bem-estar da população nos primeiros anos de vida activa.

O argumento de Blanchard não é incorrecto: é incompleto. A desregulação restrita ao CPE poderá deteriorar o bem-estar de alguns candidatos ao primeiro emprego, mas será uma oportunidade bem vinda para outros. Christian Gollier afirma que o CPE poderá proporcionar aos candidatos menos qualificados a possibilidade de sinalizarem uma produtividade atractiva para os empregadores, aumentando dessa forma a probabilidade de conseguirem um contrato de trabalho duradouro. Por outro lado, aos melhores candidatos, detentores de formação universitária, impõe um custo adicional de incerteza, sem grandes benefícios esperados de estabilidade futura. Porquê? Porque não elimina a barreira política que separa os acomodados dos descontentes. Estes candidatos constituem a maioria dos estudantes que se manifesta nas barricadas, aliados aos sindicatos interessados na preservação da esclerose legislativa da economia francesa.

Equacionando as possibilidades de reforma, Olivier Blanchard interroga-se:
Doit-on donc accepter un capitalisme sauvage, un système où les entreprises font la loi, et les travailleurs sont corvéables à merci ? Bien sûr que non. Nous ne sommes plus au 19e siècle, et la France est un pays riche.
A obsessão francesa com o “capitalismo selvagem” tem raízes filosóficas profundas e percorre transversalmente o espectro partidário. Mesmo economistas do calibre de Blanchard parecem ter relutância em explicitar a causa da riqueza francesa, caindo no disparate da “oposição” entre o mercado e a ordem civilizada.

Para a maioria dos políticos franceses o mercado não é um cenário institucional de transacções mutuamente vantajosas (e por isso geradoras de bem-estar): é uma selva. Contra esta barbárie, onde impera a lei do mais forte, urge construir a “civilização.” Nesta delirante estupidez, o Estado surge como uma construção política — a mais elevada manifestação de civilização.

Não se trata de um mito de esquerda: poucos terão resumido tão exemplarmente esta hipotética oposição entre Estado e mercado como Édouard Balladour, ex-primeiro ministro francês e oriundo do RPR gaullista. Em 1993, no final de uma ronda negocial do GATT, Balladour proclamou: “What is the market? It is the law of the jungle, the law of nature. And what is civilization? It is the struggle against nature.”

Não sei em que língua o fez, mas se foi em inglês talvez isso explique o desprezo de Chirac pelos balladuriens, mais do que um ou outro faux pas, designadamente a candidatura presidencial de Balladour contra Chirac, em 1995. Mas tenho uma certeza: poucas coisas são tão prodigiosamente difíceis de entender como a persistente incapacidade da elite francesa em apreender os factos económicos mais elementares.

Primeiro, foi o milénio do mercado que permitiu o florescimento da civilização ocidental. Aliás enriqueceu as sociedades capitalistas de tal forma que estas se têm revelado capazes de suportar as mais espantosas tentativas de destruição ignorante da civilização de mercado, de Rousseau a Heidegger, de Lenine a Hitler.

Há cerca de 1000 anos, o sistema de transacções económicas descentralizadas começou a ganhar importância na Europa ocidental e sofreu um significativo impulso com a monetarização das trocas económicas. A difusão do mercado gerou ganhos de bem-estar sem precedentes. Entre 1000 e 1820 o rendimento real médio triplicou na Europa ocidental. Nas economias melhor sucedidas, como o Reino Unido e a Holanda, quadruplicou. Entre 1820 e 1998 a população cresceu multiplicando-se por um factor de seis, mas o produto médio mundial multiplicou-se por um factor de 49. Em consequência o rendimento médio per capita mundial cresceu nove vezes. Porquê, Sr. Balladour?

Segundo, os ganhos de bem-estar não se distribuíram de forma homogénea, em termos espaciais. O rendimento médio do conjunto de países formado pela Europa ocidental, EUA e Austrália cresceu 19 vezes; o do Japão aumentou 31 vezes. Mas no resto do mundo o rendimento médio aumentou “apenas” 5 vezes. Porquê, Sr. Balladour?

Terceiro, a explicação banal para o “sucesso europeu” é a concentração relativa de recursos necessários à industrialização na Europa ocidental. Mas os recursos naturais eram relativamente mais abundantes noutras regiões geográficas. A R. P. da China dispunha de reservas de carvão muito maiores do que o Reino Unido. Economias como o Japão, Singapura ou Hong-Kong são praticamente ou literalmente destituídas de recursos materiais e estão entre as economias mais ricas e dinâmicas do mundo. Porquê Sr. Balladour?

Eu dou uma ajuda. Os resultados de crescimento e desenvolvimento económico foram alcançados pelas economias que adoptaram e preservaram um conjunto de normas sociais, práticas, atitudes e instituições que possibilitaram um período de inovação sem precedentes na história humana. Tratam-se de economias onde existe e floresceu um sistema de mercados económicos e que se integraram com sucesso nos mercados internacionais. O sistema de mercado não só não se “opõe” à civilização como é uma das suas mais notáveis manifestações.

Mas se o job turnover for um sintoma de capitalismo “selvagem” então temos um problema inesperado. Em Portugal, são as instituições do Estado que mais praticam o dito capitalismo "selvagem:" as universidades públicas que usam assistentes (estagiários e convidados) em elevadíssima rotação como forma de manutenção dos privilégios dos “inexpugnáveis” do quadro; ou as direcções gerais do Estado, onde contratados a prazo trabalham a sério, compensando a produtividade tendencialmente nula de muito do funcionalismo permanente.

Quando os socialistas disparam a pistola carregada com o argumento do capitalismo “selvagem” deviam certificar-se primeiro que ela não está apontada à sua própria cabeça.