O homem que era quinta-feira
Fear and loathing in Harvard
Em Março do ano passado, o presidente da Universidade de Harvard, Lawrence H. Summers, sugeriu que as diferenças estatisticamente observáveis entre o desempenho de homens e mulheres na matemática e nas ciências poderiam ser explicáveis por um diferencial de aptidões específicas entre os sexos. Tratava-se duma conjectura pertinente e baseada em evidência empírica corroborante. Tinha apenas um pequeno inconveniente: a “conjectura de Summers” desafiava a ortodoxia doutrinária do feminismo.###
Os gritos horrorizados das harpias feministas marcaram o início da "batalha" de Harvard. Durante um ano, a Faculty of Arts and Sciences liderou uma campanha com o objectivo de conseguir a demissão de Summers. No passado dia 21 de Fevereiro e sob a ameaça de nova moção de desconfiança a aprovar por esta Faculdade, Lawrence o Breve anunciou publicamente o abandono da presidência de Harvard.
O último ano de Summers como presidente de Harvard foi um longo e parcialmente auto-infligido calvário de humilhações públicas. Para aplacar a fúria dos extremistas, Summers começou por pedidos de desculpas. O extraordinário espectáculo do reitor de uma das mais antigas universidades americanas reconhecendo-se “culpado” de um delito de opinião não foi suficiente. Os radicais exigiram mais e, evidentemente, conseguiram-no: em Maio, Summers comprometeu Harvard com uma despesa sumptuária de 50 milhões de dólares, a gastar ao longo de dez anos e destinada a “estimular a diversidade.” Entre os prospectivos beneficiários directos dessa fortuna estão os mais proeminentes radicais da Faculty of Arts and Sciences: acordado o tributo da dhimittude intelectual, o espectáculo converteu-se numa dispendiosa liturgia pro defunctis em memória do livre inquérito científico.
As bruxas de Massachusetts já não são queimadas — queimam. O radicalismo académico dos anos sessenta institucionalizou-se e hoje “queimam-se” reputações académicas com a mesma fúria irracional com que há quarenta anos se queimavam soutiens. A resignação de Summers é apenas o mais recente troféu destas novas perseguições doutrinárias.
Harvard yogi-isms
Harvard é uma universidade grande e cara: tem mais de 20 000 alunos e uma despesa global anual próxima dos 3 biliões de dólares. Cada aluno paga em média quase 41 000 dólares por ano pelo privilégio de frequentar a universidade. Poder-se-ia supor que quem paga montantes tão elevados exigirá a mais elevada qualidade nos serviços prestados. Puro engano.
Nos departamentos de ciências humanas, os currículos são caóticos, os professores com maior reputação comportam-se como estrelas pop, delegando o grosso do trabalho académico em professores “menores” e em assistentes de investigação. A atitude dominante é de indulgência — entre pares académicos e na avaliação dos alunos. Ross Douthat, colunista da Atlantic Monthly e ex-aluno de Harvard, descreve a situação:“[A]ttempts by humanities professors to ape the rigor of their scientific colleagues have led to a decades-long wade in the marshes of postmodern academic theory, where canons are scorned, books exist only as texts to be deconstructed, and willfully obscure writing is championed over accessible prose. All this has merely reinforced capitalism's insistence that the sciences are the only important academic pursuits, because only they provide tangible, quantifiable (and potentially profitable) results. Far from making the humanities scientific, postmodernism has made them irrelevant.”
Com um cenário destes, como explicar a preferência por Harvard de boa parte dos melhores candidatos? Por vezes, a escolha da universidade a frequentar é um exemplo de rational herding: os melhores alunos escolhem Harvard porque... os melhores alunos vão para Harvard. Mas o equilíbrio é frágil.
O jogador e manager de basebol Lawrence “Yogi” Berra tem o pouco invejável estatuto de oráculo da idiotia, sendo-lhe atribuída a autoria de uma lista interminável de disparates: os “yogi-isms.” No decurso de uma entrevista, um jornalista perguntou-lhe se ainda costumava frequentar um determinado restaurante. Yogi Berra respondeu: “no, nowadays it’s so crowded that no one goes there.”
Ainda que por inadvertência, a resposta de Berra configura um paradoxo da racionalidade comportamental relevante para a situação de Harvard: se todos os potenciais clientes de um restaurante cheio o considerarem desagradável, então não ir ao restaurante é a decisão racional. Se todos agissem dessa forma o restaurante ficaria vazio, o que sugere a pergunta óbvia: por que razão está o restaurante permanentemente cheio?
Harvard é uma universidade que vive essencialmente da enorme reputação acumulada. Essa reputação confere uma margem de discricionariedade que, tal como em alguns restaurantes sistematicamente cheios, possibilita uma atitude de arrogância, complacência e desinteresse pelos clientes / alunos. Como parte do quid pro quo, as elevadas propinas pagas pelos alunos “compram” resultados académicos acima da média — quando comparados com os resultados históricos na mesma instituição e quando comparados com os resultados em outras instituições.
A “inflação de notas” tornou-se tão grave que professores como Harvey Mansfield começaram a usar um peculiar esquema de avaliação, dando duas notas por curso a cada aluno. Uma é a “nota oficial,” relevante para efeitos de média final. A outra é confidencial e transmitida directamente ao aluno, reflectindo a melhor opinião de Mansfield sobre o mérito do desempenho do estudante.
A degradação do serviço académico não dura indefinidamente e os estragos provocados por décadas de radicalismo à reputação de Harvard são notórios. Entre os estudantes, bem como nos departamentos que não estão submetidos à tirania do politicamente correcto, o apoio a Larry Summers e ao seu programa reformista era esmagador.
O presidente de Harvard foi forçado à demissão por uma clique de radicais envelhecidos e entrincheirados nos departamentos de ciências humanas de Harvard. Nos próximos anos, dificilmente alguém se aventurará a prosseguir o programa de reforma e reabilitação iniciado por Larry Summers. Boa parte da patrulha intelectual que o acusou de ter emitido opiniões ofensivas para as sensibilidades feministas e para algumas convicções pseudo-religiosas do pós-modernismo desfrutará de um final de carreira académica tranquilo. Em Portugal toda esta situação seria inimaginável: por cá, os reformistas são normalmente mortos à nascença.
O Caravaggio perdido(*)
— That painting, over the fireplace: is it from Turner?
— We don’t know, Sir. There are no records of the paintings at Tinakilly House.
Durante o trajecto entre Rathnew e Dublin penso na verosimilhança da hipótese do quadro pendurado sobre a lareira do bar ser de J. M. W. Turner. A casa foi construída pelo governo inglês em 1883 para Robert Halpin, comandante do The Great Eastern, navio que colocou 2600 milhas de cabo telegráfico submarino entre as duas margens do Atlântico norte. Joseph M. W. Turner morreu em 1851, mas não seria completamente improvável que Halpin conhecesse a obra de Turner e admirasse particularmente as representações de cenas marítimas, frequentemente trágicas.
Já em Dublin passo por Leeson Street. O número 35 desta rua é a House of Saint Ignatius. Durante cerca de setenta anos aí repousou um quadro atribuído ao pintor holandês Gerrit van Honthorst, registado sob a tradução (deturpada) do seu nome para italiano: Gherardo della Notte. O quadro, The Taking of the Christ, havia sido oferecido aos Jesuítas no início dos anos trinta pela Dra. Marie Lea-Wilson, uma conhecida pediatra de Dublin e, até aí chegar, percorreu um tortuoso caminho desde Roma, onde foi pintado em 1602.
Foi comprado por William Hamilton Nisbet em 1802 à família Mattei, por 2300 scudi romani, juntamente com outros quadros. Enviado para a Biel House — a casa de Nisbet na Escócia — aí permaneceu até 1921. Com a morte da última descendente de Nisbet, o quadro foi leiloado pela Dowell’s de Edimburgo, mas não foi vendido, por desinteresse dos potenciais compradores. Algum tempo depois a Dra. Lea-Wilson adquiriu-o, apenas porque o achou interessante. No início dos anos 30, doou-o aos padres Jesuítas da House of Saint Ignatius.
Sérgio Benedetti é restaurador na National Gallery de Dublin. Em Agosto de 1990 deslocou-se à residência jesuíta no sul da cidade, para avaliar o estado de conservação de alguns quadros. Ao inspeccionar o The Taking of the Christ, Benedetti não teve dúvidas que o pintor não era o obscuro Gerrit van Honthorst. O quadro vendido pelos Mattei para evitar a ruína financeira, transportado para a Escócia com a autorização do Camerlengato do Vaticano (baseada numa falsa declaração do valor de compra), usado como trivial objecto de decoração, ao ponto de não atrair compradores em leilão, não era do holandês. Era de Michelangelo Merisi da Caravaggio.
Qual a probabilidade de um Caravaggio perdido reaparecer numa casa jesuíta de Dublin, mais de quatro séculos depois de ter sido pintado? Maior ou menor do que uma cena marítima de Turner a ornamentar, de forma discreta e "anónima" uma lareira numa mansão vitoriana na costa de County Wicklow?
No dia seguinte fui à National Gallery, para ver, finalmente, “o Caravaggio perdido.” Na parede vermelha da sala nº 42, apenas um pequeno dístico: this picture is currently on loan. Na Irlanda, os grandes quadros têm o enervante hábito de aparecerem e desaparecerem quando menos se espera.
(*) Os detalhes da história do quadro perdido de Caravaggio constam do excelente livro de Jonathan Harr, The Lost Painting (New York: Random House, 2005).
por FCG @ 3/02/2006 05:36:00 da tarde
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