Um conto de Natal
Esta é a história do Estado, o Despesista.
Durante décadas o Estado prometeu ao povo um milagre: desenvolvimento económico sem a necessidade de maior "contribuição" para os cofres deste. Recorria, por isso, ano após ano e década após década, ao crédito. Dizia que o investimento público retornaria, no futuro, sob a forma de mais riqueza. Riqueza que serviria para pagar as dívidas. E o povo, ano após ano e década após década, acreditou. Queria acreditar porque o Estado afirmava ter aprendido com os erros do passado. Queria acreditar porque o Estado lhes prometia certezas sobre um futuro incerto.
O Estado declarava que compreendia o povo, que era um deles. Que - ao contrário do seu rival Mercado - se preocupava com justiça social para todos. E o povo, ano após ano e década após década, sem saber o que realmente significa "justiça social", acreditou.
Estado, o Despesista era adorado pelo povo!###
Mas neste ano de 2005, na noite de véspera de Natal, o Estado recebeu um cartão de festas assinado por um antigo sócio: Estado, o Cobrador, morto pelo povo quando, muitos anos atrás, tentou aumentar os impostos para pagar os elevados gastos públicos. "Isto é uma brincadeira", pensou o Despesista, "o Cobrador já morreu há muito tempo. Não pode ter escrito este cartão". No entanto, a curiosidade levou-o a ler a missiva. Lia-se: "Vais ser visitado por três fantasmas. Ouve o que eles têm a dizer se não queres ter destino igual ao meu". O Estado sorriu e atirou o cartão para o lixo.
Porém, poucas horas depois, o Estado acordou sobressaltado. Sentiu uma presença no quarto e, com a mão a tremer, carregou no botão da luz do seu avançado sistema de domótica. Segundos depois, a vela acendeu. O pânico inicial transformou-se num assustador grito de terror. Um fantasma pairava sobre a sua cama...
"Q-q-q-quem és tu", perguntou o Estado. "Sou o Fantasma dos Défices Passados", respondeu o espectro, "venho mostrar-te o teu passado". E, num veloz movimento, envolveu o Estado com o seu manto e ambos desapareceram.
Amedrontado, o Estado abriu os olhos e, apesar da surpresa, facilmente reconheceu o momento do passado que decorria à sua frente. Tratava-se da assinatura do acordo de concessão de benefícios fiscais ao consórcio AutoEuropa. "Não percebo", disse o Estado, "este foi um bom investimento para Portugal". O fantasma nada disse e levantou novamente o seu manto. Estavam agora no meio de um imenso terreno movimentado e remexido por dezenas de escavadoras. "Mas este é o local da Expo'98", afirmou o Estado surpreso.
Durante a seguinte hora visitaram inúmeras obras do Estado (Centro Cultural de Belém, barragem do Alqueva, Euro2004, autoestradas sem portagem - SCUT, comboio pendular Lisboa-Porto, Casa da Música, museus, teatros, etc) empresas estatais (RTP, CP, Carris, STCP, Metro de Lisboae do Porto), assinaturas de programas de apoio a empresas (subsídios para restruturação, modernização, formação, etc), milhares de contratações e aumentos salariais de funcionários públicos, acordos de compra de material militar com contrapartidas de fabrico nacional, sistema da Segurança Social, etc.
De volta ao palácio do Estado, este fez uma última pergunta: "mas... não foi todo este investimento público importantante para o desenvolvimento de Portugal". Mais uma vez, a sua pergunta ficaria sem resposta. O fantasma desvaneceu.
De volta à sua cama, o nervoso Estado tentou acalmar-se assinando um projecto-lei para criação do Observatório de Sonhos Inquietantes, uma entidade paga para dormir e ter bons sonhos. Rapidamente o Estado descansou a cabeça na almofada e adormeceu.
Pouco mais de dez minutos tinham decorrido quando o Estado acorda no chão frio de um escuro escritório. Num canto deste, está uma figura em posição fetal a murmurar, vezes sem conta, "100 mil milhões, 100 mil milhões, 100 mil milhões...". "Mas é o Teixeira dos Santos" diz o Estado surpreendido por ver o seu ministro das Finanças naquela posição. "Que se passa Teixeira", pergunta o Estado, sem, contudo, conseguir qualquer reacção da parte do ministro.
"Ele não te ouve" diz uma voz nas costas do Estado que, voltando-se sobressaltado, percebe estar perante outro fantasma. Antes que o Estado possa dizer qualquer coisa a aparição fala: "Sou o Fantasma do Défice Presente. Segue-me até à mesa de trabalho do ministro e lê os documentos que aí estão".
Estado, o Despesista senta-se na confortável cadeira do ministro (pele genuína!!!) e logo reconhece o Orçamento de Estado Rectificativo de 2005. Nele alguém destacou o aumento do IVA de 19% para 21%. A seguir está o Orçamento de Estado para 2006 com destaques no novo imposto a pensionistas, aumento do escalão máximo de IRS, subida dos impostos do tabaco e de produtos petrolíferos, aumento da idade de reforma, etc.
"Mas... tu, Fantasma do Défice Presente... tu devias ser o primeiro a aplaudir estes sacríficios que pedi ao povo. Estou, afinal, a tentar reduzir o défice". O fantasma nada diz, pega no telecomando da televisão de plasma pendurada na parede e liga-a para mostrar ao Estado as cerimónias do aeroporto da OTA, do TGV e do Plano Tecnológico. "Mas estes são importantes investimentos que trarão riqueza ao país", replica o Estado. O fantasma volta a carregar no botão do telecomando e na televisão surgem imagens do Alqueva sem utilização, da AutoEuropa sem novos modelos para construir, dos estádios de futebol com baixíssima lotação, dos vazios teatros e museus, das avultadas dívidas da ParqueExpo, CP, RTP, Carris, STCP, Metro de Lisboa, Metro do Porto, etc. Com um nó na garganta, o Estado permanece em silêncio.
Quando finalmente a televisão se desliga, o Estado levanta apenas uma questão: "porque está o Teixeira ali naquela posição". O fantasma volta à mesa e coloca nas mãos do Estado o boletim de Dezembro do Instituto de Gestão do Crédito Público (pdf). Na página 2, o valor da dívida total do Estado está em destaque: mais de 100 mil milhões de euros!!!
De repente, o Estado está de volta ao seu quarto. Sem qualquer indício do fantasma. Com receio do que ainda está para vir, o Estado refugia-se debaixo dos lençois de seda e tenta esquecer as últimas horas. Mas sempre que fecha os olhos surge-lhe a imagem do pobre Teixeira e o som da sua incessante lamúria: "100 mil milhões, 100 mil milhões, 100 mil milhões...".
Horas passam e o terceiro fantasma não aparece. O Estado volta a acreditar que as suas políticas de contenção orçamental darão, no futuro, o resultado pretendido: a manutenção do actual nível de despesas e redução do défice através do aumento de receitas. Adormece...
Acorda de manhã, relaxado e cheio de vigor. Ergue a cabeça e verifica que o seu secretário pessoal já lhe deixou na mesa de cabeceira o jornal e o sumo de laranja subsidiada. Coloca os seus óculos graduados Hugo Boss e lê a primeira página do jornal. "Estado, o Despesista morreu", é o título deste. Em pânico, o Estado lê atentamente o desenvolvimento da notícia. Tudo aconteceu quando o Estado anunciou ao povo que, para pagar a Dívida Pública, teria de cortar as despesas sociais mantendo, contudo, o nível de impostos. Aterrorizado, o Estado observa finalmente o nome do jornal: "Fantasma dos Défices Futuros". O Estado grita.
O Estado grita e acorda no seu quarto. É manhã. O Estado salta para a mesa de cabeceira e pega no jornal. É o Público e na primeira página está o título "José Sócrates impõe colecção Berardo à administração do CCB". O Estado respira de alívio.
Mas terá sido um sonho? Um pesadelo? Se o que aconteceu foi verídico, como pode o Estado, o Despesista evitar semelhante destino?
"O erro fatal foi cortar nas despesas sociais. Para fazer face ao défice tenho de pedir sacrificios, aumentar os impostos (temporariamente), lançar maiores investimentos públicos e comunicar ao povo que estamos no caminho certo", conclui o Estado. Mais aliviado, o Estado levanta-se, toma um relaxante banho, veste o seu casaco Armani e gravata italiana e, do seu gabinete de trabalho, dirige-se ao povo:Prezados concidadãos
O ano que está prestes a terminar foi mais um ano ainda difícil para muitas famílias e para muitas pessoas na sociedade portuguesa. Eu sei isso.
Mas este foi também um ano em que o País começou, finalmente, a enfrentar e a resolver os seus problemas.
Todos sabemos que o País não avança continuando a viver de ilusões e de sucessivos adiamentos. E sabemos também - sabemos todos - que há muitas coisas que é preciso mudar em Portugal para que possamos garantir aqui um futuro melhor, para nós e para os nossos filhos.
Pois essa mudança já começou. Finalmente, começou.
Não é, nem poderia ser, um caminho de facilidades.
Como não é, nem poderia ser, um passe de mágica, como se fosse possível mudar as coisas de um dia para o outro.
Mas estamos a seguir o caminho certo.
por BrainstormZ @ 12/26/2005 08:16:00 da tarde
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