As you go
Há, pelo menos, uma razão para seguir com alguma atenção o debate político britânico: o socialismo português é um socialismo de “terceira via em segunda mão”, um blairismo importado, autárquico e neo-corporativo. Por isso, as más ideias de hoje no Reino Unido têm uma elevada probabilidade de constituírem as péssimas “propostas” dos amanhãs lusitanos. ###
A mais recente má ideia britânica é a alteração radical do sistema de fiscalidade que incide sobre os automóveis e sobre o consumo de combustíveis. O Secretário dos Transportes britânico, Alistair Darling, pretende ver aprovado um plano que tem como objectivo a redução drástica dos custos de congestionamento gerados pela circulação automóvel. A ideia é criar aquilo que os economistas chamam um esquema de peak-load pricing, estabelecendo preços diferenciados a serem pagos pela circulação automóvel, que variarão em função do tipo de estrada (local, nacional, auto-estrada) e do grau de congestionamento (os preços não variam continuamente; serão estabelecidos “períodos” correspondentes aos “picos” de utilização). É intenção do governo britânico “avançar” rapidamente e ter esquemas de teste dentro de dois anos.
A aplicação deste plano —o “plano de Darling”— exige algumas medidas “técnicas”. A principal de entre elas é a instalação de uma espécie de “caixa negra” em todos os automóveis em circulação no Reino Unido. Essa caixa é um dispositivo de localização permanente, que permitirá à entidade encarregue da “gestão de tráfego” saber a cada momento se o veículo se encontra em movimento, qual o ponto de partida, quais as estradas por que circula, qual o ponto de chegada e ainda, obviamente, as horas iniciais e finais bem como o tempo de duração do trajecto. São informações “necessárias” para calcular o “tarifário” da viagem e, desse modo, estabelecer um preço “personalizado” pela utilização das estradas.
O “plano de Darling” tem dois antecedentes óbvios: os dispositivos de localização e controlo remoto de animais selvagens e os mecanismos de controlo e vigilância de presos em regime domiciliário. Os cidadãos britânicos ficarão em desvantagem comparativa relativamente aos crocodilos da Florida, ou aos lémures de Madagáscar. Por um lado, a instalação do “dispositivo de controlo” nos animais é fisicamente mais desconfortável —são, por regra, atordoados e imobilizados com uma droga qualquer e o dispositivo é-lhes ligado ao corpo de forma permanente. Por outro lado, o controlo é normalmente irregular e infrequente. Em comparação com o regime de prisão domiciliária, as diferenças são de ordem mecânica: com as pulseiras electrónicas pretende-se manter a “entidade controlada” circunscrita a um espaço restrito e previamente determinado; com as caixas negras automóveis pretende-se controlar o movimento da “entidade controlada”. É portanto uma questão de inércia e velocidade, uma vez que, por enquanto, não se discutem problemas de aceleração —a fúria controladora do Sr. Darling ainda não se exerce à segunda derivada.
Que esta proposta monstruosa seja discutida seriamente é motivo de preocupação: o Reino Unido prepara-se para espatifar despreocupadamente um dos últimos vestígios de uma distinção milenar e fundamental em qualquer comunidade política: a distinção entre o privado e o público. Não é por acaso que o congestionamento do trânsito é tratado politicamente como um “problema social” —hoje, a generalidade dos problemas políticos são “sociais”. A emergência do “social” como categoria conceptual é um fenómeno novecentista que tornou difusa a fronteira crucial entre assuntos de ordem pública e privada.
O público é a esfera da igual liberdade, enquanto que o privado é o domínio da necessidade. Pela sua natureza intrínseca, ambos exigem modos de relacionamento distintos. A esfera pública exige o estabelecimento de uma relação de civilidade entre os membros —o primado da lei— materializada num conjunto de leis não instrumentais. A esfera privada exige uma ordenação diferente, que permita adequar os meios disponíveis à satisfação das diversas necessidades. A crescente importância do “social” é o resultado do domínio crescente das “ciências sociais” —a sociologia e, sobretudo, a economia. Não se trata de um acaso: “economia” tem origem no termo grego oikonomikos, do étimo oikos que significa algo próximo de família, identificando uma unidade gregária que vive sob o mesmo tecto. Desde o início do séc. XIX que a progressiva influência do utilitarismo fez com que a tentativa de identificação de “equilíbrios sociais” tomasse conta da economia política. Ironicamente, nenhum dos “founding fathers” do utilitarismo acreditava verdadeiramente no que defendia: Bentham contradizia-se constantemente e tão depressa defendia o “felicific calculus” como garantia que a adição dos “prazeres” era totalmente destituída de significado lógico. Já Stuart Mill parecia achar que a adição de prazeres qualitativamente distintos era eticamente reprovável mas achava —erradamente— que o hedonismo comportamental era perfeitamente compatível com os princípios fundadores da ordem liberal.
Como compreender então a sobrevivência e o sucesso de um “morfismo utilitarista” —a análise custo-benefício— como o quadro conceptual de fundamentação das políticas públicas no início do séc. XXI? A resposta é simples: os socialistas compreenderam perfeitamente que esse era o quadro conceptual ideal para a criação e densificação de mecanismos de controlo e de “planeamento” social, conferindo ao estado o papel coordenador entre as “necessidades e os “recursos”.
O raciocínio económico aplicado a uma comunidade política tende a considerar esta com se fosse uma grande família, cujos problemas correntes carecem de regras e de um permanente esforço de coordenação. Um dos “dogmas” socialistas é o da “impossibilidade” de mecanismos de coordenação não artificiais —sem “decretos” não há ordem. O governo é simultaneamente o “chefe de família” e a governanta da sociedade: ordena e administra. Tal como uma família numerosa estabelece regras e hierarquias para que a turbulenta criançada não se esgatanhe na disputa anárquica pelo privilégio da primeira utilização matinal da casa de banho, os governos contemporâneos produzem os seus planos e mecanismos de controlo para resolver os problemas de desequilíbrio social —no caso corrente, o Sr. Darling e o seu “plano” de tarifagem pela utilização das estradas.
Porque concebe a sociedade como uma “grande família”, não lhe ocorre o obsceno da violação da privacidade de cada um, ao ser permanentemente vigiado e controlado nos movimentos: reduzida a nada a fronteira entre o privado e o público, estamos todos permanentemente no “espaço social” e sujeitamo-nos a “regras” —não a leis. Abdicámos do pudor, não devemos agora estranhar que sejamos tratados pelos governos com a mesma sem cerimónia de crianças em pijama de escova de dentes em punho, aguardando na fila: uma palmadinha paternalista, um “tenha paciência” que de outro modo não se pode administrar a “nossa casa comum”. Não se admire se descobrir nesta última expressão ecos de frases típicas da propaganda europeísta —não é coincidência. A visão geopolítica da Europa de Brezhnev, Kohl e Gorbatchev tem como denominador comum a “construção da casa europeia”, num tijolo político suficientemente resistente para aguentar o sopro do “lobo mau americano”.
E assim, we all pay as we go —to hell. Como rebanho ordeiro atrás do som da flautinha traiçoeira dos Darlings de circunstância.
por FCG @ 6/09/2005 11:06:00 da manhã
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