O monopólio da virtude
A esquerda sempre se auto-representou como a força política da transformação social. Era o "motor" do “progresso”, da “mudança” e nos casos limites da “revolução”, à qual conferiu o sentido moderno de ruptura violenta e irreversível (para os antigos a “revolução” era apenas tumulto e instabilidade cíclica). A mudança, violenta ou não, tem no discurso da esquerda um carácter de “desejabilidade”, de superioridade moral. A esquerda representa os interesses "bons”; age em nome dos “oprimidos”, dos privados de "voz política”, dos "pobres", dos “excluídos”, etc. A esquerda criou e atribuiu a si própria o "monopólio da virtude política".
Esta representação ideológica, inventada e protegida pela esquerda, deixa à direita o eterno papel de contraponto: a força “reactiva” que visa impedir a mudança, que pretende preservar os privilégios de alguns, manter a "opressão" e o “obscurantismo”. O mecanismo implícito é de teor marxista: uma dualidade social conjugada com a certeza quanto à “bondade” moral da causa esquerdista e a correlativa identificação da direita com as forças tenebrosas que “exploram”, “oprimem” e que se opõem à mudança. Esta representação da direita é mais do que conveniente: é absolutamente necessária à esquerda. É o fundamento ideológico da "ilegitimidade" de qualquer projecto político da direita. A legitimidade "moral" da esquerda sobrepõe-se a todas as outras "legitimidades", incluindo a democrática. Mesmo quando a direita recolhe uma maioria (ou uma pluralidade) de votos, isso é sempre encarado pela esquerda como um “desvio” temporário, um “erro do juízo popular”: o povo é soberano mas não é infalível e por vezes pode não interpretar “correctamente” o sentido da história.
Em poucos contextos contemporâneos esta raiz intolerante da esquerda é tão visível como no quadro da política norte-americana. A primeira eleição de G W Bush desencadeou (dentro e fora dos EUA) uma onda de contestação da esquerda como nunca se tinha visto. Foi uma guerrilha política que começou imediatamente após a eleição de 2000, quando o partido democrata declarou que o presidente americano era “ilegítimo” porque tinha tido menos de 50% do voto popular e que atingiu o paroxismo nos meses que antecederam a reeleição de Bush. O estado de "incredulidade" limite da esquerda americana no "day after" era bem revelador. Em 2000 o "povo" tinha-se enganado e tinha sido "enganado", mas em 2004 a repetição do "erro" popular era inconcebível.
G W Bush está longe de ser um caso isolado de ódio esquerdista: Reagan e Thatcher são outros dois notórios exemplos e ambos foram democraticamente eleitos e reeleitos. Os governos Thatcher ainda hoje são "recordados" com ódio pela esquerda. As políticas prosseguidas foram claramente reformistas e Thatcher fez algo que a esquerda não admite: inverteu as "regras do jogo". Assumiu-se como força dinâmica e reformista da sociedade, remetendo a esquerda à condição de força defensora do imobilismo, dos interesses corporativos entranhados num estado "extenso" e disfuncional, dos proteccionismos, ou seja: contestou o "monopólio da virtude" da esquerda.
Qualquer projecto político de direita, para ter sucesso, terá necessariamente de fazer o mesmo. Mas em Portugal, as dificuldades são bem maiores que nos países saxónicos. Há uma barreira inultrapassável: a barreira constitucional.
por FCG @ 3/02/2005 10:57:00 da manhã
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