4.5.06

Leitura recomendada (II)

Independentemente agora de sabermos se "justiça social" corresponde a "igualdade de rendimentos", a verdade é que, quisesse ele realmente fazê-lo ou não, o Presidente lançou uma violenta crítica implícita ao "modelo social português", a versão nacional do europeu. Portugal, nos últimos 30 anos, ficou refém de dois projectos político-económicos fracassados. O primeiro foi o da construção de uma "sociedade socialista", ou "sociedade sem classes". Não vale a pena fazer a enésima demonstração do desastre e da profunda injustiça social, económica e política daquilo que existiu do outro lado da "Cortina de Ferro". Mas desse "sonho" primitivo sobrou um segundo, uma versão atenuada do primeiro, que consistiu na tentativa de construção de um "Estado social". A Europa ocidental, onde também se fizeram diferentes versões desse Estado, vem-se confrontando com as dificuldades da herança, e nós também.###

É escusado considerar mal-intencionadas as pessoas que acreditaram nesse sonho. Mas também é verdade que o deveriam demonstrar sendo sensíveis a uns quantos dados históricos que hoje possuímos. Esses dados mostram-nos que os Estados-Providência não resolveram nem atenuaram a desigualdade de rendimentos. A desigualdade de rendimentos efectivamente atenuou-se bastante durante o século XX, mas a maior parte dessa atenuação ocorreu antes da instalação dos modernos Estados-Providência, que teve lugar a partir dos anos 60. As desigualdades sociais esbateram-se sobretudo em consequência do fim dos antigos regimes no século XIX, que definiam quadros de privilégio social imutável, e da transferência de população da agricultura para a indústria. Esbateram-se também à conta de acontecimentos trágicos, como as duas guerras mundiais, que tiveram um extraordinário efeito de nivelamento social. A grande questão hoje é saber por que razão os Estados-Providência afinal não serviram para aquilo que foram criados. Ainda há muito por explorar, mas temos já algumas indicações. Tem-se concluído, por exemplo, que grande parte da redistribuição não se faz dos mais ricos para os mais pobres, mas dos mais ricos para a classe média. Sabe-se também que o sistema não redistribui necessariamente (e por definição, de resto) dos mais ricos para os mais pobres, mas dos mais jovens (ricos ou pobres) para os mais idosos (ricos ou pobres), dos saudáveis para os não saudáveis ou dos que não têm filhos para os que têm. Tudo isto num quadro em que os mecanismos do Estado-Providência servem essencialmente para manipular rendimentos e fazer promessas cujos intuitos são eleitorais e não "sociais".