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A Imaginação ao Poder
Se não serviu para mais nada, a gloriosa jornada revolucionária de Maio de 68 serviu pelo menos para legar à posteridade uma bela colecção de slogans dignos da melhor agência publicitária. Por exemplo: “A Imaginação ao Poder”. Desde esses dias que gerações sucessivas de estudantes franceses anseiam repetir os feitos de então. Não há ano em que não apareçam os mais recentes candidatos ao papel de Daniel Cohn-Bendit ou Alain Krivine da hora. Este ano também não falhou. De novo, lá temos a Sorbonne entregue ao tumulto da rapaziada. O motivo agora é uma nova forma de contrato laboral que o governo de Villepin decidiu introduzir (o CPE, ou Contrat Première Embauche), supostamente para facilitar o emprego dos jovens. Se a taxa de desemprego em França anda entre os 9% a 10%, a dos jovens (até aos 35 anos) vai para o dobro. O CPE permitiria, na ideia do governo e ao facilitar o despedimento na fase inicial da carreira, flexibilizar os primeiros anos de vida laboral e aumentar o emprego entre os jovens. Os “jovens” não se deixaram convencer, e logo ensaiaram uma repetição dos dias em que “debaixo do passeio” estava a “praia”. Ocuparam a Sorbonne, escavacaram as instalações e chegaram mesmo, numa demonstração de amor ao conhecimento, a destruir livros da biblioteca. Não vale a pena negar que o ritmo quotidiano de greves, manifestações e motins ao mínimo pretexto levanta dúvidas sobre a estabilidade da democracia francesa. O mesmo se passando noutros sítios, como a Itália ou a Espanha. Mas isso é tema para falar noutro dia. Hoje, fiquemo-nos pelo problema da “imaginação”.###
Deve dizer-se, em abono dos “jovens”, que eles não estão sozinhos na sua nostalgia pela “revolução inencontrável”. Mal se aglomera meia dúzia de “jovens” em greves e manifestações, as páginas dos jornais enchem-se dos mais diversos especialistas perguntando-se se não será este o novo “Maio de 68”. Na verdade, a cena repete-se como um ritual, e já nem sequer é preciso que os protagonistas sejam “jovens” universitários. Por exemplo, há uns anos, perante greves de alunos liceais, os mesmos especialistas perguntavam-se se aquele não seria o “Maio de 68” juvenil. O ano passado, quando jovens das banlieues se divertiram a sacrificar uns carros pelo fogo, logo regressaram as hipóteses de estarmos perante uma espécie de “Maio de 68” étnico.
Na realidade, estes sucessivos “Maios de 68” não passam de produtos da imaginação retro de uma geração que está a atingir o limite da idade activa e que legou um padrão de comportamento supostamente a imitar. Muitos jovens de hoje caíram na esparrela desta memória histórica e persistem em ressuscitar acontecimentos que garantiram fama instantânea a uns rapazes mais ou menos inconsequentes de há quarenta anos atrás. São esses jovens de há quarenta anos atrás que tratam logo de os enquadrar, devolvendo as suas manifestações à genealogia de “Maio”. E são esses jovens de há quarenta anos atrás que estão no poder. No poder político, no poder económico, no poder jornalístico. E mal vislumbram um burburinho de jovens de hoje, tratam logo de se rever neles, projectando neles a sua nostalgia adolescente. Tentando, neles, regressar aos dias em que foram felizes atirando pedras aos “CRS = SS”.
Enfim, talvez fosse a hora de acabar com este patético ciclo de lugares-comuns de antiquário. Maio de 68 houve um, valeu o que valeu (menos do que os seus nostálgicos julgam) e as gerações actuais deviam compreender os seus dias em vez de tentarem repetir os dos seus pais ou avós. Talvez fosse, portanto, a hora de acabar com o recorrente espectáculo de circo pobre e cumprir o velho slogan. Isto é, finalmente fazer ascender “a imaginação ao poder”.
por Anónimo @ 3/15/2006 11:36:00 da manhã
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