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A Vida de S. Joãozinho
Pudemos perceber este ano que Hollywood não está nos seus melhores dias. Dos filmes nomeados para os óscares, apenas dois merecem algum crédito pela ambição e concretização artísticas: Munique, de Steven Spielberg, e o vencedor do óscar para o melhor filme, Crash, de Paul Haggis. E, mesmo assim, ambos sofrem do mesmo problema narrativo: a caricatura. Munique é um óptimo thriller político, tecnicamente excelente, e carregado de pequenos sinais interpretativos que lhe dão uma leitura complexa (para pormenores, ver a revista Atlântico, onde já escrevi sobre o filme). Crash é um filme de tese (“a América vive em segregação”), que utiliza a técnica da tragédia para a fazer passar. É pior do que Munique, mas certos momentos atingem um nível de tensão raro (a criança que não morre, a salvação da mulher negra pelo polícia racista). Mesmo assim, e mesmo nos melhores momentos, não deixa de ser construído na base de pequenos truques narrativos, muito óbvios. Apesar destes méritos, os dois filmes padecem do tal problema da caricatura. Árabes e israelitas em Munique não passam de caricaturas de árabes e israelitas, e o racismo explosivo de Crash também sofre do mesmo problema – na verdade, a América (e Los Angeles em particular) não é (são) racista(s) daquela maneira. Quanto ao mais, filmes como Good Night, and Good Luck (sobre o qual também escreverei na próxima Atlântico), Brokeback Mountain ou, ainda mais, Syriana, não passam de objectos medianos, nalguns casos mesmo medíocres.
Como prova de que a imaginação não impera pelos lados de Sunset Boulevard está o filme de que quero falar, um filme estimável (que valeu um óscar a Reese Witherspoon), mas, também ele, pouco mais que médio: Walk the Line.###
Walk the Line é uma biografia de Johnny Cash, o cantor/compositor de country e rock n’roll americano. Melhor, é a biografia de apenas uma parte da vida de Johnny Cash, a que vai da infância ao final dos anos 60, centrando-se sobretudo nos anos em que Cash desenvolveu uma relação, que redundaria em casamento, com June Carter (da família mais mítica da música country, a Carter Family). O material narrativo da vida de Cash é óptimo: nascido numa família pobre de cultivadores de algodão do Arkansas, Cash transformou-se numa estrela country e rock n’roll no final dos anos 50. Viciou-se então em anfetaminas, que o levaram à cadeia várias vezes e, a certa altura, dada a frequência com que as tomava, quase o mataram. Cash abandonou o vício graças à relação, primeiro adúltera e depois matrimonial, com June Carter, mas também graças à adopção de uma profunda religiosidade cristã. Transformado em herói da cultura popular durante os anos 50 e 60, Cash caíu na decadência musical a partir dos anos 70. Até que, em finais dos anos 90, foi redescoberto por um produtor de música pop moderna (Rick Rubin), que o pôs a gravar de tudo, desde gospel até músicas dos U2 e dos Depeche Mode. Por muito que as suas gravações dos anos 50 e 60 sejam imprescindíveis, estas, entre 1999 e 2003, ultrapassam-nas largamente. Cash viria morrer em 2003, quatro meses depois de June.
Walk the Line agarra-se apenas à parte superficialmente mais excitante e folclórica da vida e música de Cash: literalmente, a parte do sexo, drogas e rock n’roll. E termina em happy ending, com Cash reabilitado das drogas e com a família. Mas o filme falha naquilo que é o mais importante da sua vida. A vida de Cash foi, essencialmente, uma vida de queda e redenção, uma espécie de vida de santo. A desagregação individual em que caiu, coincidente com o momento de maior êxito artístico, foi resolvida pelo amor a June e o temor a Deus. Depois do casamento com June e do fim do vício, Cash passou a viver uma vida de devoção, durante a qual escreveu um livro sobre S. Paulo e financiou um filme cristão, The Gospel Road.
E acabou por ser isto a permitir-lhe a notável ressurreição artística dos últimos quatro anos de vida. Os famosos American Recordings são o regresso à fonte musical da música pop: uma guitarra, uma voz, hinos religiosos, gospel e baladas baladas folk. Mesmo quando interpreta os U2, Tom Waits ou Nick Cave, o que Cash faz é mostrar o que as canções valem sem a parafernália de estúdio ou electrónica que, entretanto, encheu a música pop. E o que é surpreendente é que muitas dessas canções são excelentes e, expurgadas da produção barroca, são excelentes canções country, folk, blues ou gospel tradicionais. Nesses discos, Cash mostrou que a música pop não inventou nada sobre a linguagem musical das baladas irlandesas do século XVII ou do canto de escravos do século XVIII, apenas adicionou ornamentos, tantas vezes rebarbativos. Em Walk the Line, Cash (Joaquin Phoenix) aparece, antes de ter gravado qualquer disco, a cantar no alpendre de sua casa velhos hinos religiosos aprendidos com a mãe. E quando apresenta as canções ao famoso produtor Sam Phillips, ele explica-lhe que aquilo não presta. Cash mostra-lhe então o seu rock n’roll e Phillips lança a sua carreira. É por aqui que se fica Walk the Line. Mas a história de Cash quase poderia ser lida ao contrário: foi, no final da vida, o seu regressou ao estilo gospel de igreja que o tornou único. Sem esta fase, ainda para mais mística, Cash seria apenas outro herói dos anos 60 (junto com Elvis ou Jerry Lee Lewis). Com ela, ultrapassou esse limite e transformou-se num dos maiores trovadores modernos. Cash regressaria mesmo à origem da origem, gravando um disco (publicado postumamente) só com hinos religiosos aprendidos com a mãe (My Mother’s Hymn Book). Foi aí que regressou às músicas do alpendre. E quando as comparamos com a sua versão dos Depeche Mode (Personal Jesus), verificamos que, afinal, quase nada as distingue, porque a música pop, no fundo, não passa dos velhos três-quatro acorde das baladas tradicionais.
Está bem de ver que a rapaziada de Hollywood nunca seria capaz de apanhar nada disto. Mas a verdade é que não custava muito, e sempre se fazia um filme realmente bom.
por Anónimo @ 3/10/2006 01:27:00 da tarde
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