30.11.05

O supra-Camões

A analogia é absoluta. Temos, primeiro, a nota principal da completa nacionalidade e novidade do movimento. Temos, depois, o caso de se tratar de uma corrente literária contendo poetas de indiscutível valor. E note-se - para o caso de se argumentar que nenhum Shakespeare nem Vítor Hugo apareceu ainda na corrente literária portuguesa - que esta corrente vai ainda no princípio do seu princípio, gradualmente, porém, tornando-se mais firme, mais nítida, mais complexa. E isto leva a crer que deve estar para muito breve o inevitável aparecimento do poeta ou poetas supremos, desta corrente, e da nossa terra, porque fatalmente o Grande Poeta, que este movimento gerará, deslocará para segundo plano a figura, até agora primacial, de Camões. Quem sabe se não estará para um futuro muito próximo a ruidosa confirmação deste deduzidíssimo asserto? [...]
Pode objectar-se, além de muita coisa desdenhável num artigo que tem de não ser longo, que o actual momento político não parece de ordem a gerar génios poéticos supremos, de reles e mesquinho que é. Mas é precisamente por isso que mais concluível se nos afigura o próximo aparecer de um supra-Camões na nossa terra. [...] Porque a corrente literária, como vimos, precede sempre a corrente social nas épocas sublimes de uma nação. Que admira que não vejamos sinal de renascença na vida pública, se a analogia nos manda que vejamos apenas uma, duas ou três gerações depois do auge da corrente literária?
É óbvio que Pessoa não afirma que seria ele o "supra-Camões", mas, a posteriori, quase que podemos dizer que estava a desenhar um fato à sua medida. Interessante é também a parte final deste conjunto de artigos:
Tirem-se, rapidamente, as tónicas conclusões finais. São três. A primeira é que para Portugal se prepara um ressurgimento assombroso, um período de criação literária e social como poucos o mundo tem tido. Durante o nosso raciocínio deve o leitor ter reparado que a analogia do nosso período é mais com o grande período inglês do que com o francês. Tudo indica, portanto, que o nosso será, como aquele, maximamente criador. Paralelamente se conclui o breve aparecimento na nossa terra do tal supra-Camões. Supra-Camões? A frase é humilde e acanhada. A analogia impõe mais- Diga-se «de um Shakespeare» e dê-se por testemunha o raciocínio, já que não é citável o futuro. A segunda conclusão é que, tendo o movimento literário português nascido e acompanhado o movimento republicano, é dentro do republicanismo, e pelo republicanismo, que está, e será, o glorioso futuro deduzido. São duas faces do mesmo fenómeno criador. Fixemos isto: ser monárquico é, hoje, em Portugal, ser traidor à alma nacional e ao futuro da Pátria Portuguesa. A terceira conclusão é que o republicanismo que fará a glória da nossa terra e por quem novos elementos civilizacionais serão criados, não é o actual, desnacionalizado, idiota e corrupto, do tripartido republicano. De modo que é bom fixar isto, também: que ser monárquico é ser traidor à alma nacional, ser correligionário do Sr. Afonso Costa, do Sr. Brito Camacho , ou do Sr. António José de Almeida, assim como de vária horrorosa subgente sindicalista, socialista e outras coisas, representa paralela e equivalente traição. O espírito de tudo isso é absolutamente contrário do espírito da nova corrente literária. Tudo ali é improtado do estrangeiro, tudo é sem elevação nem grandeza, popular com o que há de mais Mouraria na popularidade. Para nada de morte lhes faltar, nem antitradicionais são: herdaram cuidadosamente os métodos de despotismo, de corrupção e de mentira que a monarquia tão como seus amou. [...]
Fernando Pessoa nunca gostou particularmente da 1.ª República nem dos seus principais protagonistas. O futuro glorioso de Portugal prognosticado por Pessoa ainda não aconteceu, mas o brilho da obra que produziu, esse ninguém o pode tirar.

Post scriptum: As citações do artigo de Pessoa publicado in A Águia, foram retiradas do livro de António Quadros, Textos de Intervenção Social e Cultural - A Ficção dos heterónimos, Europa-América.