Em defesa do "Velho do Restelo"
Não deve haver na literatura portuguesa personagem mais difamada. Por tudo e por nada chama-se a alguém "Velho do Restelo": "és um velho do Restelo", "só os velhos do Restelo é que pensam assim", "os velhos do Restelo do costume" e por aí fora....
Ou seja, o Velho do Restelo surge como metáfora, comparação, símbolo, epíteto (eu sei lá..., escolham mais algumas figuras de estilo) daqueles que, supostamente, são "botas-de-elástico", "retrógados", "inimigos do progressos", etc..., etc..., etc...
No entanto, esta reputação é de todo imerecida e - não tendo eu feito qualquer investigação sobre o assunto e, por isso, não sabendo da origem da expressão com o sentido que ela tem actualmente -, francamente, só pode ser utilizada por quem não leu com atenção o chamado "Episódio do Velho do Restelo", Canto IV, 94-104, dos Lusíadas, ou por quem deu conta de idênticas dúvidas sobre a chamada "Empresa da Índias" como, por exemplo, Gil Vicente ou Sá de Miranda.###
Qual a justificação desta minha afirmação? O próprio texto dos Lusíadas, e não entrando aqui em considerando quanto a função e aos antecedentes deste tipo de episódio na história da literatura desde a Antiguidade, em que o Velho do Restelo é apresentado como sendo alguém muito digno : "Mas um velho de aspeito venerando," (Est. 94, v. 1) e "C'um saber só de experiências feito,/Tais palavras tirou do experto peito:" (Est. 94, vv. 7-8).
A seguir, o discurso do Velho do Restelo é uma reflexão filosófica sobre a empresa das Índias e que ele condena não por qualquer alergia ao progresso, mas por a considerar apenas comandade pela cobiça e que o custo de tal operação será muito mais elevado do que as suas vantagens, devido às consequências nefastas que terá na sociedade portuguesa.
Também rejeita o fundamento de "dilatar a Fé e o Império", pois se queriam combater o Infiel (os muçulmanos) tinham o Norte de África para o fazer, onde poderiam obter a fama, glória e riquezas que buscavam no Oriente longínquo.
O Velho do Restelo mais do que representar uma facção retrógada, alérgica ao progresso, representa uma parte da sociedade portuguesa, da alta nobreza, que dava, por razões ideológicas (e religiosas), uma importância maior ao nossos domínios no Norte de África, pois era aí que os filhos da alta nobreza normalmente terçavam pela primeira vez as armas.
Por outro lado, a empresa das Índias foi muito mais uma acção conduzida pela pequena e média nobreza que, nunca podendo alcandorar-se aos altos cargos no Norte de África, viu nesta empresa um meio de poder singrar na vida.
Mas, como eu disse mais acima, com o "Velho do Restelo" Camões deu voz nos Lusíadas (e lembremo-nos que os Lusíadas foram compostos dezenas de anos depois da Viagem do Gama), a esta facção contemporânea da viagem que estava contra a sua relização. Mas, já antes de Camões, Gil Vicente e Sá de Miranda tinham expressado as suas dúvidas sobre a nossa presença no Oriente.
No caso de Gil Vicente, basta reler o "Auto da Índia", de 1509 note-se, Gil Vicente critica o impacto das expedições ao Oriente na sociedade, da infidelidade feminica provocada pela ausência dos maridos, da cobiça do portugueses na Índia, sobretudo dos capitães, e da ilusão que criava nos soldados que regressavam de mão a abanar(vv.493-497):Lá vos digo que ha fadigas,
A mitologia oficial dos heróis dos Descobrimentos é logo aqui posta a nu.
Tantas mortes, tantas brigas,
E p'rigos descompassados,
Que assi vimos destroçados.
Pelados como formigas."
Também Sá de Miranda (1481-1558), exprimiu semelhantes dúvidas sobre as vantagens de manter as possessões no Oriente, na famosa Carta a "António Pereira, senhor do Basto, quando se partiu para a Côrte co a casa tôda"(Edição Sá da Costa):Não me temo de Castela,
Sá de Miranda, humanista, homem conhecedor da Europa e do que se passava no seu tempo, sentia o Oriente como causa de decadência do Reino.
donde inda guerra não soa;
mas temo-me de Lisboa,
que, ao cheiro desta canela,
o Reino nos despovoa.
Quando Camões escreveu os seus Lusíadas, havia já uma grande contestação ao modo como D. João III tinha dado prioridade à Índia, em comparação com o abandono de algumas das possessões africanas. lembremo-nos que, em parte, as posições do Velho do Restelo seriam as posições do próprio Camões, pois este insta D. Sebastião, no início e no fim dos Lusíadas, a fazer guerra em África contra os mouros (um resquício ainda do espírito de Cruzada e dos ideais de Cavalaria), aliás também partilhados, por exemplo, por Gil Vicente, no final do Auto da Barca do Inferno (os Cavaleiros mortos em África que vão directos para a Barca da Glória).
Em conclusão, o Velho do Restelo não representa uma opinião reaccionária, contra o progresso, mas apenas, uma opinião, bastante ancorada na sociedade portuguesa quinhentista, que duvidava, por diversos motivos, das vantagens da aventura oriental, das conquistas no Índico, chegando-lhe a atribuir as causas da decadência de Portugal. No eloquente discurso (cheio de processos retóricos que remontam a Homero) do Velho do Restelo, misturam-se as ideias de um Humanismo antibelicista, abrindo excepção a este antibelicismo à guerra com os Mouros.
Por isso não chamem Velho do Restelo àqueles que se opõe ao progresso ou que são, pura e simplesmente, refractários ao progresso, pois do que se trata aqui é de uma diferente avaliação do deve-haver da aventura imperial na Índia.
Post-scriptum. Esta entrada foi sugerida pela contínua audição, em diferentes circunstâncias, da expressão "Velho do Restelo" no sentido que eu contesto aqui.
Post-scriptum 2. O que eu digo aqui nem sequer prima pela originalidade, pois os programas do 10º ano (não estou a falar do actual), já pediam aos alunos para relacionar o Episódio do Velho do Restelo com o Auto da Índia. Todavia, o problema é que a expressão cristalizou o seu sentido.
por Rui Oliveira @ 3/17/2005 02:26:00 da tarde
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