26.7.06

Pontos de Fuga

Em tempo de conflitos onde se sinta cheiro de judeu ou americano, logo chovem manifestos pela paz. Manifestos legítimos e evidentemente norteados pela participação cívica, mas que quase sempre escasseiam quando os olhos se voltam para outras zonas do globo, onde regimes torcionários parecem fazer esquecer a ideia de humanidade. Desta vez, surgiu o Manifesto pelo termo da violência e do desastre humanitário no Médio Oriente que, para além das assinaturas partidárias do costume, junta nomes como D. Januário Torgal, Eduardo Lourenço, Eduardo Prado Coelho, Frei Bento Domingues, Manuela Magno, Maria João Seixas ou Maria Velho da Costa. Querem acompanhar-me numa leitura rápida sobre o documento, que pode ser lido aqui?###

“O crescendo da vasta ofensiva bélica de Israel e bombardeamentos de terror há mais de um mês na Faixa de Gaza (Palestina) e desde 12 de Julho no Líbano, os consequentes horrores da guerra e tragédia humanitária, alarmam todos quantos, mulheres e homens de boa vontade, independentemente de questões políticas, se preocupam com o destino do martirizado Povo palestiniano e com a Paz no Médio Oriente”.

Para este manifesto, Israel ofende, não se defende. Ataca, não sobrevive. Provoca, não resiste. Os mártires moram apenas num lado da fronteira, mesmo que sejam os líderes desses mártires os primeiros a atacar e a declarar a vontade de exterminar um povo, um Estado, uma nação. Mesmo que os líderes árabes do mundo inteiro se recusem a ajudar tais mártires e antes se dediquem a enxotá-los (e a expressão é esta). Para estes senhores, que decidem escolher um dos lados, as oportunidades que os árabes tiveram de acabar com a guerra e constituir um Estado palestiniano independente são de somenos. A história daquela região, desde 1948, é de somenos. E, pelos vistos, os israelitas que morrem dia após dia vítimas de algo que não pode ser classificado senão como terrorismo não são mártires. (lembrar Camp David).

Desde então, assiste-se da parte de Israel, pretextando o “direito a defender-se”, a uma escalada de violência militar não só “desproporcionada” mas sistemática. Esta acção, em violação aberta e caracterizada do Direito Internacional, foi agora agravada com a agressão contra o Líbano invocando a captura no Sul de dois outros militares israelitas”.

Para este manifesto, o Hezbollah, aparentemente um grupelho irresponsável que cometeu o erro de raptar soldados, não anda há anos a planear e a ameaçar a sobrevivência de Israel. Para este manifesto, a história começa aqui. Tudo para trás se apaga. Não se quer saber, por exemplo, da história do Hezbollah na região, que usa e abusa dos civis para se vitimizar e fazer proliferar manifestos. Claro que a guerra, para estes senhores, é de condenar. Mas apenas a guerra que vem do lado de Israel, claro. A seguir esta teoria, Israel tinha desaparecido desde o primeiro dia da sua independência. Ou não sabem estes senhores quem começou a guerra em 1948?

Em nenhum outro lugar do mundo o assassinato de homens, mulheres e crianças inocentes não é considerado um ataque. Em Israel, no entanto, esses actos nunca são ataques. Os franco-atiradores que atiram em bebés, os homens-bomba que se explodem em pizzarias e discotecas, raptores que capturam e matam reféns e os indivíduos que se infiltram para assassinar atletas olímpicos são todos combatentes da paz e da liberdade.

Os objectivos da mais ambiciosa e destruidora ofensiva militar israelita da última vintena de anos, só possível em estreito conluio com os EUA (que vetaram no Conselho de Segurança uma resolução moderada reclamando a retirada de Israel de Gaza), ultrapassam em muito a restituição de três militares presos”.

E que não viessem os EUA à baila, claro. Sem eles, a coisa perdia impacto e podia ser que ninguém assinasse. Porque, para estes senhores, os EUA têm de escolher um dos lados. Têm de optar. Mas a história está aí para demonstrar como os EUA têm tido uma política de estreitamento de relações com Israel, ao mesmo tempo que procuram estabelecer boas relações com o Médio Oriente. Desde a Segunda Guerra Mundial os EUA têm prestado ajuda económica e militar à região e são, hoje em dia, um dos principais parceiros de nações como a Jordânia, Arábia Saudita, Egipto ou os emiratos do Golfo.

E os senhores esquecem também as vezes que os EUA divergiram de Israel. Por exemplo, Eisenhower durante a Guerra de Suez, que forçou Israel a retirar do território que tinha conquistado. Ronald Reagan por exemplo suspendeu um acordo de cooperação estratégica após Israel ter anexado os Montes Golan. Noutra ocasião, suspendeu a entrega de aviões de combate devido à sua insatisfação com a incursão israelita no Líbano.

Visam, em Gaza e no Líbano, derrubar organizações políticas e dirigentes democraticamente eleitos, instalar uma correlação de forças neo-colonial na região, desestabilizar a Síria e o Irão. As chamas da guerra, que se estenderam da Faixa de Gaza ao Líbano, ameaçam alastrar-se aos Estados vizinhos e confluir com as guerras em curso no Iraque e no Afeganistão, culminando num conflito generalizado a todo o Médio Oriente – que abalaria ainda mais o equilíbrio e a Paz mundial”.

Para este manifesto, a democracia, sabe-se lá como funcionando, legitima organizações como o Hamas ou o Hezbollah. É certo que os povos têm o direito de eleger os seus próprios líderes, mas Israel também tem o direito de decidir quais líderes estão aptos a reconhecer e com quem estão dispostos a negociar. Não se pode esperar que Israel negoceie com alguém que conduz uma campanha de terror contra os seus cidadãos.

Para os signatários, desestabilizar países como o Irão é pecado. Para este manifesto, nada como deixar toda aquela zona em paz, armando-se até aos dentes. Não os aborrecer enquanto eles prosseguem a escalada da violência. Acontece que estes senhores não vivem ali, não morrem ali, não vêem o ódio ao Ocidente que ali se pressente todos os dias. Quando eles cá chegarem, quando for tarde demais, de que servirão estes manifestos? Será então a altura de rogar aos EUA que salvem a Europa ameaçada?

Vem finalmente o manifesto reiterar a necessidade de um estabelecimento de Estado independente e soberano da Palestina mediante a retirada de Israel dos territórios ocupados.

Claro que o manifesto deixa em branco as inúmeras oportunidades desperdiçadas de criação desse Estado: em 1937, quando a Comissão Peel propôs a partilha da Palestina e a criação de um Estado árabe, em 1939, quando o o Livro Branco britânico propôs a criação de um Estado árabe somente, em 1947, quando as Nações Unidas teriam criado um Estado árabe ainda maior como parte do seu plano de partilha, no processo de Oslo, iniciado em 1993 ou em 2000, quando o primeiro-ministro Barak se ofereceu para criar um Estado palestiniano, mas Arafat rejeitou o trato.

Claro que o manifesto deixa em branco que Israel não controlou a Cisjordânia entre 1948 e 1967 e que então não foi criado qualquer estado independente.
A estes assuntos voltarei, se os comentários assim o determinarem. Sinceramente, depois de ter lido este manifesto, e pese o imenso respeito que tenho por alguns dos seus signatários, não tenho vontade de argumentar muito mais...