Passos Perdidos
A Ilusão Socrática
Ao contrário do que muito boa gente pensa, e o próprio quer fazer crer, José Sócrates é tão socialista como os seus antecessores no PS.
###
"Passos Perdidos" não é apenas o nome de uma divisão do nosso Parlamento. Nem sequer apenas o título do espaço mensal que hoje se inicia. É uma expressão que caracterizaria muito bem o passado recente deste país. De há dez anos para cá, este país teve, de formas diferentes, excelentes oportunidades de dar os passos que necessitava dar para sair do buraco para que caminhava. Do buraco no qual se encontra hoje. Foram passos que ficaram perdidos nas páginas dos poucos comentadores que foram aconselhando as reformas que esses passos representavam. Guterres governou durante anos de prosperidade e benesses europeias. Optou por alimentar os vícios do Estado e dos que vivem à custa do Estado, em vez de emagrecer o primeiro, transferir os segundos para o sector privado, e libertar os restantes do sufoco em que vivem. Durão, com o descalabro a que chegou Guterres, teve outra oportunidade de ouro. Ao contrário de Guterres, não tinha um país a atravessar um período de "vacas gordas". Mas o "pântano" deixado pelo antecessor permitir-lhe-ia, caso tivesse tido coragem, vontade ou capacidade, fazer aquilo que nenhum outro havia feito. Não teve coragem nem capacidade, certamente. E vontade, só teve a de se ir embora a meio. Como Guterres. Seguiu-se Santana, do qual nem vale a pena falar. Chegou Sócrates. E pouco tempo depois, era já, aos olhos de muitos, um exemplo de "coragem". De "vontade". De "capacidade". Há quem considere que é Sócrates o homem que irá dar os passos que têm ficado perdidos no caminho deste país. Há quem pense que ele já os está a dar. É pena, mas tal impressão não passa de uma ilusão.
Esquecem-se da campanha que lhe deu o poder. Para Sócrates, bastava ter "confiança" para que o país "crescesse". Bastava "voltar a acreditar". E a maioria acreditou. Acreditou que não eram necessárias reformas para que o país não continuasse na decadência em que está. Que não era preciso mudar para que as coisas melhorassem. Como acredita agora que mais uma subida de impostos pode resolver o desequilíbrio das finanças públicas. Como acredita agora que não é preciso reestruturar o Estado para que o seu peso não se torne incomportável. Como acredita agora que não é necessário retirar ao estado um determinado número de obrigações que ele hoje suporta, para que os cidadãos possam ter a oportunidade de prosperar individualmente.
Porque, tal como a maioria que acreditou em Sócrates continua a acreditar nisto, é nisto que o próprio Primeiro-Ministro acredita. Acredita que, não cabendo ao Estado participar na economia, é a sua função "conduzir" os privados na direcção certa. Acredita que cabe ao Estado ser o "pastor" do rebanho dos cidadãos. Basta olhar para a prática deste Governo. O primeiro Orçamento que apresentou era um conjunto de medidas ou irrelevantes, ou contraproducentes. O melhor que fez foi eliminar o tratamento desigual de alguns cidadãos por parte do Estado (a equivalência da idade de reforma dos funcionários públicos à dos restantes cidadãos), o que dificilmente se pode qualificar de uma grande medida reformadora. Os grandes projectos de investimento público que apresentou mostram a sua natureza dirigista. As alterações na área da habitação são um bom exemplo do carácter socialista do actual governo. O Governo não está a ocupar o espaço de outra área política que não a sua. Se os outros se sentem "roubados" é porque em pouco se distanciam do estatismo do PS. De liberalizador o Governo não tem nada. Mesmo a questão das farmácias ainda se terá de ver no que vai dar na prática. Pois pode ser como tudo o que este governo tem feito. Uma ilusão que vem alimentando.
Como explicar então o sucesso que o Primeiro-Ministro parece ter? Como explicar a sua popularidade? A situação da oposição não é explicação suficiente. Durão também enfrentou uma oposição terrivelmente fragilizada. A eficaz propaganda do Governo, a fábrica de ilusões que ele constitui, também não basta por si só, até porque, à medida que as expectativas que alimenta vão sendo contrariadas, como se viu quando o governo foi forçado a aumentar os impostos, como se viu na questão da refinaria de Sines, e como se verá certamente em inúmeros casos futuros, o Governo paga o dobro daquilo que com ela ganha. Poderá pensar-se que, no fundo, o país não quer as reformas. Não quer a "liberalização". Quer apenas, como o Primeiro-Ministro, salvar o "Estado Social", mesmo que à custa de menor riqueza (e menores benefícios do dito "Estado Social". Se há coisa que este Governo percebeu foi que o "Estado Social" possa sobreviver, para que possa desempenhar todas as funções que hoje desempenha, tem de dar menos a cada um dos muitos que dependem dele). Não duvido que essa seja a vontade do "país". Será certamente a vontade dos 60% que Medina Carreira diz viverem à custa do Estado. Mas Durão e Santana em nada se distinguiram de Sócrates neste aspecto (só o facto de Sócrates estar a fazer o que faz prova que eles pouco ou nada mudaram), e não beneficiaram de particular popularidade por causa disso.
Resta uma explicação. Os "passos" que têm ficado "perdidos". Ou melhor, a imagem que deixaram os que os perderam. Sócrates é popular porque parece "fazer". Quando se foi antecedido por Guterres, Durão e Santana, cada espirro parece um sinal de "coragem", de capacidade para agir. Quando se foi antecedido por Guterres, Durão e Santana, qualquer medida que seja tida como "difícil" para os cidadãos, é logo tida como virtuosa, mesmo que constitua um factor de empobrecimento generalizado, quando existem alternativas que, no mínimo, dariam a alguns a oportunidade de melhorar as suas vidas (as recentes alterações nas pensões são um exemplo desta confusão entre a "dificuldade" de uma medida e a sua "virtude"). Após uma sucessão de líderes políticos que contribuíram como ninguém para a descredibilização da classe política, a imagem de Sócrates, por muito ilusória que seja, é sempre vista como algo melhor que o passado. O que é realmente trágico, é que quando a ilusão socrática for vista enquanto tal, enquanto uma ilusão (e isso inevitavelmente acabará por acontecer), a descredibilização será ainda mais profunda. Depois de Santana, tudo tinha que ser melhor. Quando se vir que não é, parecerá ainda pior. Sócrates pagará por isso. Mas o país pagará mais. Se até aqui os passos se perderam, depois, dificilmente haverá alguém para os dar.
por Anónimo @ 6/01/2006 12:33:00 da tarde
<< Blogue