Se
Nota inicial: tinha previsto escrever sobre outra coisa, mas perante a descoberta sensacional do Banco de Portugal e outros especialistas de que, afinal, as previsões económicas e orçamentais do governo eram "optimistas", decidi republicar um artigo que escrevi para o DN há cerca de meio ano atrás, por alturas da aprovação do orçamento. Posso estar enganado, mas não me lembro de nenhum outro artigo à época que tenha dito o que ali digo. E mesmo que tenha havido, terão sido um ou dois. A generalidade do comentário económico era, então, de que, finalmente, o "realismo" tinha chegado ao governo, e que "agora é que é", agora é que os problemas "vão ser atacados de frente". Não é preciso andar cá há muito tempo para saber que esta é a conversa que se repete todos os anos, excepto (claro) nos tempos fundadores do caos e da tragédia que foram os de Santana/Bagão. Na verdade, só não viu quem não quis ver. Cá está o artigo:
Verdade
Enfim, chegou o orçamento “sem truques”. Com ele, o governo afirma colocar-se a si próprio num elevado patamar de transparência. Se assim é, deve então assumi-lo por inteiro. De acordo com o governo, estamos finalmente a falar verdade em matéria orçamental. Ora, se é esse o padrão no qual o governo se coloca, exploremos a verdade até ao fim.
Para sermos realmente verdadeiros, temos de admitir que são mais que muitas as dúvidas que o orçamento coloca. Comecemos por aceitar que todas as medidas de redução da despesa e aumento da receita são correctas. Mesmo nessas dúbias circunstâncias, surgem de imediato questões sobre o cenário macroeconómico assumido. Este cenário tem sido muito elogiado pelo seu presumível “realismo” e “prudência”, nomeadamente por prever um crescimento económico baixo (1,1%) e um preço do petróleo alto (65 dólares por barril). Há várias razões para pensar que, para nos ficarmos apenas pelo crescimento, esta previsão venha a ser desmentida em baixa. Para que aquele crescimento se verifique, é necessário que as exportações aumentem para o ano cerca de 6%. Um aumento desta ordem de grandeza requer duas coisas: por um lado, crescimento dos nossos parceiros comerciais, que são sobretudo europeus; por outro, uma grande capacidade de penetração nossa nos seus mercados. Ninguém está em condições de garantir que uma e outra condições se verifiquem. Qualquer previsão realista teria de ter em consideração o ritmo lentíssimo de crescimento das economias daqueles parceiros nos últimos anos, bem como a concorrência acrescida que, a partir da Ásia e do leste da Europa, os nossos produtos virão a sofrer. Em nenhum destes aspectos há lugar para optimismo e o orçamento é aqui, portanto, optimista, muito mais do que “prudente” ou “realista”. Ora, retirada a contribuição mágica da exportação, restaria à economia portuguesa, para obter aquele já de si fraco crescimento, a chamada “procura interna”. Eis onde se levantam novas dúvidas, pondo outra vez em causa a tão celebrada “prudência”. Porque a procura interna vai certamente ser deprimida pela contenção de salários e o congelamento de carreiras na função pública, bem como pelas reestruturações previstas nos serviços e nas carreiras. Quase se poderia dizer que, neste aspecto, o orçamento contém em si próprio as causas do seu incumprimento.###
Mas em matéria de verdade nem sequer precisamos de assumir que todas as medidas da chamada “contenção da despesa” e aumento da receita são correctas. Esqueçamos a receita, onde se volta a agravar dramaticamente a punição fiscal – o que também tem consequências sobre o crescimento. Fiquemo-nos pela despesa. Desde logo, se exceptuarmos as restrições salariais e os congelamentos, a contenção por via das reestruturações está apenas no domínio das intenções. O orçamento não especifica como elas vão ser feitas e é de prever que as resistências a elas sejam ferozes. Tudo pode correr muito mal por este lado. De resto, nem sequer se está a ver como vai ser feito. Depois, o orçamento não avança nada de eficaz para a contenção das componentes da despesa mais incontroláveis e ameaçadoras, a segurança social e o Serviço Nacional de Saúde. Convém que nos entendamos aqui: o aumento da idade de reforma, a convergência da CGA com o regime geral, a eliminação de subsistemas sociais, a mudança de regras para comparticipação de medicamentos, a dita “empresarialização” dos hospitais não eliminam o potencial de crescimento destes itens de despesa. Ora, são eles que comprometem qualquer contenção dinâmica das despesas e o equilíbrio sustentado das contas. O orçamento mostra precisamente isso. Mesmo depois de introduzidas as modificações, os gastos com a segurança social crescem quase 8% (meia dúzia de pontos acima da taxa de crescimento da economia) e com a saúde algo (não especificado) que não andará muito longe disso. Não há aqui alternativa a uma revisão completa da forma como funcionam, o que teria de passar por uma sua privatização (pelo menos) parcial ou pela introdução de princípios de capitalização (no caso da segurança social) ou, ainda, por um aumento da poupança das famílias.
Onde chegamos ao ponto em que é mesmo preciso falar verdade. E a verdade é que nada disto se resolve sem uma outra visão do que é a nossa sociedade, a nossa economia e o nosso Estado, sem uma outra visão do que é a relação deste com os cidadãos e os agentes económicos (que também são os cidadãos). Porque, caso não adoptemos essa outra visão, ariscamo-nos a que a social-democracia em que vivemos e que, historicamente, representou a promessa de um acesso acrescido a certos bens e serviços ditos sociais, se transforme no seu carrasco. Arriscamo-nos a que se transforme num deprimente e lúgubre regime de punição e restrição ao bem-estar. A maneira como tanta gente de esquerda (outrora tão disposta a classificar como “bárbaras” e “selvagens” as receitas por si agora tão consciensiosamente aplicadas) adopta uma postura arrogante e autoritária na imposição de sacrifícios que, de repente, passou a considerar “inevitáveis”, é já um sinal muito preocupante disso mesmo. Se não arrepiarmos caminho, este orçamento não será (como por aí se vai ouvindo) o primeiro no caminho da salvação, mas mais um na ladeira por onde continuamos a escorregar.
por Anónimo @ 4/20/2006 11:46:00 da manhã
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