pequena fuga
Começo por agradecer ao André Azevedo Alves e aos Insurgentes a generosidade e confiança pelo convite para escrever para O Insurgente. A minha contribuição será feita semanalmente, às sextas-feiras, numa "coluna" que será intitulada "pequena fuga". É óbvia a referência ao blogue que partilho com o AMN; por outro lado, é uma possível tradução de fughetta, palavra derivada de "fuga", forma musical que muito aprecio; e homenageia a fabulosa composição Grosse Fuge ("Grande Fuga") de Beethoven. Mas sobretudo reflecte o que pretendo fazer com esta "perninha": fugir da rotina da agenda política e dissertar sobre questões menos comuns, numa perspectiva algo liberal que — espero eu!— seja pertinente, provocante e despretensiosa.
Estado - Not in my back yard (1)
1. A teoria liberal é negativa— identifica os direitos naturais do indivíduo, e argumenta que um estado de justiça consiste na não-transgressão dos direitos do outro, que dependem do respeito do conceito de propriedade— tanto a imaterial (a vida, a dignidade, liberdade pessoal— que são inalienáveis), como a material. A propriedade é um direito, como é a gestão voluntária dos direitos a uma determinada propriedade. A apropriação forçada de propriedade por outrem é sempre um acto de agressão, contra o qual existe direito de defesa. Contra o uso da força de coacção ou excessos de defesa existe o Estado, que funciona como garante e árbitro. Quando a Lei serve a Justiça, observa os direitos à propriedade. A Lei divorcia-se da Justiça quando o Estado faz o que proíbe os privados de fazerem uns aos outros— desrespeitar a propriedade alheia.
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As filosofias colectivistas sempre procuraram combater estes princípios. Para garantir que um governo possa encaminhar a sociedade para um estado-final desejado, é necessário que as pessoas não sejam absolutamente livres de gerirem a sua propriedade— é preciso impor um direito colectivo sobre a propriedade privada. Esta imoralidade socialista está profundamente integrada no ordenamento jurídico e assimilada pela consciência "pública". A constatação é flagrante nos domínios do Ordenamento do Território e da Política Ambiental. São casos típicos de políticas apoiadas em falácias populistas e perigosas que granjeiam grande aceitação pública pelo fascínio do "mal imediato evitado" (o intervencionismo "que é visto"), mas que a longo prazo envenenam o tecido social e sabotam os seus próprios objectivos.
2. O Governo Sócrates volta a ameaçar avançar com o processo de co-incineração de resíduos sólidos industriais perigosos— e de imediato recomeçou a berraria política e popular. Politicamente, cada partido ou grupo de interesse defende o processo que entende ser mais correcto o Estado empreender. Os populares directamente afectados repetem enfurecidos "not in my back yard!" ("não no meu quintal").
O enquadramento "liberal" desta questão é difícil.
Primeiramente há que defender que as pessoas têm o direito de serem compensadas quando algum dano lhes é inflingido, directa ou indirectamente. É uma questão de defesa da propriedade— a sua saúde— que é um bem que devem poder preservar ou sacrificar conforme os seus interesses. O actual sistema não ajuda estas pretensões, porque a saúde das pessoas é "pública"— é o Estado que assegura os serviços médicos e "paga" a factura, pelo que cabe ao Estado negociar as contrapartidas económicas quando há interesses conflituantes, e responsabilizar-se pela compensação em género (serviços médicos) aos lesados. Na prática, o Estado impõe autoritariamente as soluções às populações, perturbando seriamente a sua vida, dizendo-lhes que recorram ao Serviço Nacional de Saúde se necessário, que é para isso que serve e é "gratuito".
No caso da "co-incineração", fala-se em prejuízo para a Saúde provocado pela contaminação local de um bem público— o ar. Se as pessoas tivessem o poder negocial de serem responsáveis pelos seus cuidados de sáude, poderiam gritar "Not in my back yard!" (NIMBY), com o poder de processar o Estado ou as empresas que atentassem contra si. Mas surgiria um mercado de transacção de "direitos" de instalação de empresas potencialmente perigosas. Algumas comunidades poderiam dizer "Yes, in my back yard, for a price" (YIMBY-FAP). Na prática, poderiam voluntariamente negociar a priori comparticipações directas nos seus custos de Saúde, equipamentos públicos, investimentos ambientais, ou quaiquer outras contrapartidas— inclusivamente empregos e subcontratos para empresas locais— a par de eventuais compensações por efeitos imprevistos da poluição.
É importante o princípio da subsidiariedade e de liberdade de associação local. Seriam as pessoas a decidir, possivelmente delegando em representantes directos (não necessariamente políticos, eventualmente empresariais), para que possam elas beneficiar directamente da negociação— e não as autarquias em troca de rotundas e financiamentos partidários. Reflicta-se: para permitir um sistema como descrito "apenas" é necessário que o Estado devolva e garanta pela Lei (e por Justiça) os direitos aos cidadãos, e cesse a interferência com a actividade económica.
Há a questionar o voluntarismo do Governo ao querer impor uma solução técnica que adivinha ser a correcta. Seria mais sensato investir em legislação que permitisse definir sem ambiguidades em que consiste a responsabilidade das empresas produtoras de poluição para com as comunidades e pessoas lesadas, e deixar que o mercado funcionasse na procura da solução social e economicamente mais eficiente.
por AA @ 3/03/2006 04:16:00 da tarde
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