O homem que era quinta feira
Les enragés contre les enárques
Com o mês do Germinal a aproximar-se do fim, a França está de novo na ordem do dia. Do país que contrapôs o brioche à fome; que instituiu uma ditadura sanguinária aos gritos de liberdade, seguida por um império e mais quatro repúblicas, pelo meio outro império e alguns golpes de Estado; desta luminosa nação, chega agora a solução definitiva para o desemprego: eliminar a criação de emprego.###
Em 1793, os protestos dos enragés liderados por Jacques Roux abriram caminho ao controlo político da revolução por Robespierre e à instituição do Terror jacobino. Uma reivindicação central dos manifestantes era o “pão político:” o estabelecimento de um preço fixo e artificialmente baixo para o pão. Rapidamente os mecanismos de controlo administrativo dos preços foram alargados a outros bens essenciais. O controlo de preços não se revelou apenas incapaz de resolver o problema de escassez: estranhamente, parece tê-lo agravado. O pão político levou ao “desaparecimento” do pão.
Qualquer aluno mediano de Economia deve ser capaz de explicar este “mistério” no final do primeiro semestre da licenciatura. A introdução ou o agravamento de elementos de rigidez no funcionamento de um mercado produz efeitos de desincentivo. No caso do pão, gera um desincentivo à oferta por parte dos potenciais produtores; no caso do emprego, gera um desincentivo à procura por parte dos potenciais empregadores. No primeiro caso a rigidez é introduzida pela fixação administrativa do preço; no segundo caso pela via contratual. Em ambos os casos o resultado é uma redução artificial e ineficiente do volume de transacções, quer se trate de pão ou de emprego.
A V República é, em grande parte, o governo duma elite burocrática formada na École Nationale d’Administration (ENA): os enárques. Pelo menos dois dos cinco presidentes da república e sete dos dezoito primeiros-ministros são oriundos da ENA. Esta elite política e administrativa é responsável pela densificação do dirigismo típico da governação francesa. Depois de algumas décadas de delírio, a elite governante parece ter finalmente começado a compreender que a esclerose económica (também) tem uma origem legislativa. Porém, a “rua” continua convencida que é a realidade que se engana.
Se a “rua” triunfar sobre o “gabinete,” o mercado de trabalho em França será cada vez mais parecido com as lojas dos países de leste nos tempos do comunismo: grande e vazio. Sem se ter emprego não se pode ser despedido. A lógica dos manifestantes é impecável — e impecavelmente estúpida. Que lhes dizer? Vous ne voulez pas manger de ce vil pain? Mangez de la brioche!
Sabemos onde vive; sabemos o que faz
Quando a mistura de racionalismo e proteccionismo franco-prussiano se torna insuportável, há sempre a hipótese de procurar inspiração e liberdade nas terras altas da Escócia. Ou havia. No início deste ano, o historiador (e escocês) Niall Ferguson descreveu a Escócia como a “Bielorrússia ocidental.” Na altura, as manobras ucranianas do pérfido Gazputin exigiam atenção e não atribuí grande importância à tirada de Ferguson.
Putin continua a proporcionar notícias, por vezes inesperadas, como a acusação de plágio que agora recai sobre a sua misteriosa tese de doutoramento, intitulada “Strategic Planning of the Reproduction of the Resource Base," defendida num instituto de São Petersburgo em 1997.
Mas fica para outra altura. É que no passado domingo entrou em vigor na Escócia a interdição total de fumo em locais públicos. O chefe do executivo escocês classificou a medida como um “triunfo” e um sinal de progresso: a Escócia foi a primeira no Reino Unido a adoptar a proibição. Inalar o fumo produzido por outros causa-me desconforto, mas inalar coercivamente a hipocrisia política é muito pior.
A proibição é sempre apresentada como uma “necessidade” de saúde pública e como estando de acordo com a “vontade geral:” numa sondagem realizada pela linha de apoio do NHS escocês, cerca de 75% dos inquiridos concordavam com a classificação do tabagismo como “anti-social” e 20% confessavam experimentar “sentimentos de culpa.” Os primeiros precisam de compreender melhor o significado da responsabilidade individual; os segundos precisam de um psicólogo, não de uma proibição legal.
A possibilidade de proibir os clientes de fumarem deve fazer parte dos direitos de propriedade de bares, restaurantes e estabelecimentos semelhantes. Cabe aos proprietários escolher a sua estratégia de mercado, decidindo que “tipo” de cliente pretendem servir. Se existir uma clara maioria de consumidores que prefere ambientes públicos isentos de fumo, como argumentam os governos e os defensores da proibição geral, então a generalidade dos estabelecimentos visados tornar-se-ão ambientes sem fumo, mas como resultado da livre escolha de proprietários e clientes.
Não é um proclamação de fé no mercado: basta consistência lógica na argumentação e uma correcta especificação dos direitos de propriedade para preservar a liberdade de escolha e evitar o alastramento da legislação, não forçando a ser saudável quem racionalmente não o pretender. O neo-proibicionismo contemporâneo assenta numa hipótese implícita que é moralmente inaceitável e que configura uma forma de despotismo político: a convicção de que a maximização da esperança de vida é o único télos desejável.
Em nome da equidade na “partilha social” dos custos de saúde, impõem-se limitações crescentes aos modos de vida individuais; como se a forma de financiamento dos custos de saúde não tivesse sido decidida pelos Estados e fosse uma fatalidade do destino. Criado o problema pela via legislativa, eis que o mesmo Estado apresenta a “solução:” mais legislação.
Na verdade o argumento da saúde pública é um instrumento político que permite ao Estado redefinir e ampliar os limites da esfera pública (note que os bares e restaurantes nunca são tratados no discurso político como propriedade privada).
Quem tiver dúvidas sobre os objectivos deste tipo de legislação deve prestar atenção às “futuras medidas” já anunciadas pelo governo escocês e integradas no plano de controlo dos fumadores. Entre essas medidas estão duas ideias interessantes:
• Os departamentos de saúde e de acção social deverão iniciar a recolha de informação necessária à elaboração de um mapa de fumadores na Escócia;
• A informação recolhida deverá constituir a base de um plano burocrático que permita minimizar e, no limite, eliminar os "contactos" entre funcionários públicos com problemas respiratórios e fumadores.
Como se isto não fosse suficientemente aberrante e perigoso, o executivo escocês pretende ainda usar a informação recolhida para enviar cartas aos fumadores, pedindo-lhes que não fumem nas suas próprias casas uma hora antes de qualquer contacto previsto com funcionários públicos. Esta mistura de singeleza e mendacidade revela a verdadeira natureza do “plano:” trata-se de um plano de eliminação da privacidade, não do fumo. Depois de bares e restaurantes, será a casa de cada um a passar à condição de antecâmara do espaço público. Qual vendedor manhoso, o legislador avança sempre e sempre em pequenos passos. Primeiro, serão “só” pedidos; depois, se os pedidos não forem acatados como ordens, o legislador, entristecido, terá de “endurecer” as medidas. Pois claro.
Quando desaparecem as linhas de separação entre o Estado e a sociedade e entre o político e o administrativo, a sociedade é absorvida pelo Estado e o regime torna-se totalitário. Pouco a pouco o pesadelo imaginado por Giovanni Gentile vai tomando forma e a vida fora do Estado vai perdendo significado. Aceite o princípio da fronteira “difusa” da privacidade, é uma questão de tempo, técnica, persistência e habilidade legislativa. Neste ponto, Ferguson tem razão: a legislação escocesa está hoje mais próxima da mão de chumbo de Lukashenko do que da mão invisível de Adam Smith.
O regresso da pantera cor de rosa
Na remake cinematográfica o Inspector Clouseau lidera uma equipa de 32 agentes da polícia secreta, encarregues de vigiar uma jovem mulher acusada de pertencer a uma organização terrorista. Na véspera do último dia de julgamento, a prisioneira evade-se, apesar do número de agentes destacados para a guardar.
A fuga envolve meios sofisticados. Depois de sair da casa onde se encontrava detida, com a ajuda de um cúmplice, ambos fogem de carro, perseguidos por oito carros com os agentes liderados por Clouseau. Num semáforo vermelho decidem baralhar os perseguidores e... apanham um autocarro. É neste rápido e versátil meio de fuga que conseguem escapar aos agentes.
Há um “detalhe” nesta história: não se trata de ficção. A fuga em questão aconteceu em Bruges, no último dia do mês de Fevereiro. A turca Fehriye Erdal é acusada de pertencer à organização terrorista DHKP-C e de ser presumível co-autora do assassinato de três pessoas: Ozdemir Sabancı, presidente de uma das maiores empresas turcas, Haluk Görgün, presidente da Toyota turca e a sua secretária, Nilgun Hasefe. As autoridades judiciais belgas recusaram sempre os pedidos de extradição turcos.
A esplendorosa exibição de inépcia é da responsabilidade dos serviços secretos belgas, a Sûreté de l'Etat — o inspector Clouseau não seria tão incompetente. De acordo com relatos do correspondente do Daily Telegraph em Bruxelas, o episódio patético está longe de ser o único acontecimento estranho na agência. A direcção da Sûreté belga teve recentemente que mandar retirar as armas de fogo aos agentes. Motivo: as brincadeiras irresponsáveis quase mataram um deles.
A avaliar pelas críticas, a remake cinematográfica faz à memória dos filmes com Peter Sellers o mesmo que esta trupe de palhaços faz pela imagem dos serviços de intelligence: um enxovalho pegado.
por FCG @ 3/30/2006 06:17:00 da manhã
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