29.3.06

Pontos de Fuga

Parece que querem instituir um sistema de quotas para as mulheres na política. E até há quem, discordando das quotas, as aceite como medida de estímulo, meramente temporária, e se apresse em declarações de voto profundamente contraditórias. O que trespassa das ideias de quem defende as quotas é, simplesmente, a tentadora e ingénua ideia de que o Estado pode, por decreto, criar a sociedade perfeita. A perfeição é, neste caso, uma maior participação das mulheres na política. Mas se há falta de participação das mulheres na política em Portugal, das duas uma: ou estas não querem participar na política ou estas estão factualmente e/ou legalmente impedidas de o fazer. Vejamos.

Se as mulheres não querem fazer política, têm todo o direito de o não fazer ou de pugnar pelas mudanças de hábitos necessárias ao seu interesse em participar. E o caso está arrumado. Se as mulheres estão legalmente impedidas de o fazer, por constrangimentos legais vários, então essas barreiras legais são inconstitucionais e devem ser banidas da nossa ordem jurídica, por restrição inaceitável da liberdade de actuação política das mulheres. E o caso arrumado está. Resta-nos o caso das mulheres que se dizem factualmente impedidas de participar na política. E que factos são estes? Geralmente são dois: a difícil compatibilização da carreira política com as suas tarefas familiares e as excessivas limitações impostas pelos homens no seu ingresso e progressão na actividade política.
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Se o problema do acesso das mulheres à política reside na difícil compatibilização entre as tarefas familiares e a actividade política, não vejo como podem as quotas resolver o problema. As quotas não resolvem nenhum problema de compatibilidade, não diminuem as tarefas diárias a cargo de ninguém e não funcionam como mecanismo harmonizador dessas tarefas. O que as quotas podem eventualmente fazer é proporcionar às mulheres um acesso mais garantido à actividade política. Mas as suas tarefas familiares, a existirem, continuam lá. Podem objectar que, num sistema de quotas, os homens seriam obrigados a ficar com algumas dessas tarefas, visto que as mulheres seriam chamadas a outros lugares. Mas, se é assim, tal significa que essas dinâmicas e cheias de garra senhoras estão casadas com maridos que só à força de uma lei aceitam partilhar tarefas. Ora, entre marido e mulher, não meto eu a colher...

Se o problema do acesso das mulheres à política reside numa espécie de complot masculino que as impede de participar mais activamente na política, restringindo o seu acesso, então estamos perante uma prática concertada discriminatória. Mas será exclusiva da política? É que se essa prática se estende, como sempre se argumenta, a todas as áreas de chefia de todos os sectores da vida, por que razão devem as mulheres políticas ser beneficiadas sobre as mulheres não políticas? Mas imaginando que apenas na política se sente tal complot, sempre se dirá que este se funda em critérios absolutamente discricionários: uma mulher é excluída porque sim. Ora, as quotas não estabelecem nenhum mecanismo racional ou vinculado, de acesso à política. As quotas substituem uma alegada discricionariedade injustificada por uma outra, de contornos semelhantes. Se as mulheres querem estar em condições de igual acesso, devem pugnar pela criação de mecanismos de selecção que assegurem a racionalidade do acesso e à igualdade de oportunidades. Se uma mulher incompetente tira o lugar a um competente homem (ou transexual masculino, em última instância), estamos perante um sistema que promova a igualdade de acesso?

Perante isto, já ouço as vozes a clamar contra este meu post, dizendo que eu não admito a existência de barreiras às mulheres na política. Mas eu tenho de confessar que admito a sua existência, ainda que muitas delas comecem em casa, com a partilha de tarefas que voluntariamente se estabelece entre o casal. O que penso é que essas barreiras, que levam o seu tempo a serem levantadas, se conseguem apenas com a consciencialização expontânea do valor e da capacidade das mulheres, não por serem mulheres, mas por serem seres humanos. É isso que acontece hoje no ensino superior, sem necessidade de quotas. Nenhuma licenciada tem actualmente o labéu de ser licenciada apenas por ser mulher. É licenciada porque trabalhou e mereceu o título e não porque o Estado precisou de actualizar estatísticas.