O homem que era quinta feira
Contentores de burrice
Algo de estranho se passa na política norte-americana. Há cerca de um mês que diversas “pombas,” notórias pela sua oposição aos “falcões” da presidência, passaram a comportar-se de forma agressiva, enquanto os conspícuos “falcões” assumiram um tom moderado e conciliatório. Mais do que um surto episódico de gripe das “aves políticas” é mais um sinal preocupante do regresso em força do proteccionismo nacionalista. Considerando o registo histórico do último século e meio, esta perigosa tentação é bem capaz de provocar o que o jihadismo islâmico tanto anseia: uma recessão económica à escala global.###
O acontecimento que funcionou como catalizador da crise foi a aquisição da companhia portuária P&O pela Dubai Ports World. A P&O detém as concessões da gestão portuária comercial dos portos de New York, New Jersey, Philadelphia, Baltimore, Miami e New Orleans, nos EUA e ainda de Vancouver, no Canadá. A perspectiva de alguns dos principais portos dos Estados Unidos passarem a ser geridos por uma empresa de capitais árabes encaixou mal no zeitgeist americano pós 9/11 e oportunistas em busca do reforço das suas credenciais políticas aproveitaram a ocasião. Nada como uma refrega patriótica em ano de eleições para o Congresso e a dois anos das eleições presidenciais para estimular a verbosidade senatorial.
A senadora e potencial candidata presidencial Hillary R. Clinton saiu disparada à frente da matilha. A América não podia “ceder soberania” e a Casa Branca estava a “entregar” os portos americanos a estrangeiros. Hillary esmerou-se: com uma rápida sucessão de golpes demagógicos destruiu qualquer hipótese de avaliação racional da situação.
George W. Bush ainda ameaçou usar o veto presidencial para tentar dissuadir o Senado de impedir a concretização do negócio pela via legislativa. Seria juntar uma asneira a um erro: o presidente americano nunca usou o veto e seria uma resposta politicamente desproporcionada. Perante a oposição do Senado e de uma ampla maioria da opinião pública, a Dubai Ports World anunciou a sua intenção de ceder a posição contratual a uma empresa americana. A caçada terminou, a América estava “salva” e a matilha podia recolher às boxes.
Não se trata apenas da perfídia de Hillary Clinton: raras foram as vozes, mesmo entre os senadores republicanos que se atreveram a destoar do mugido proteccionista. Sucede que o comportamento do Senado americano neste episódio é vergonhoso e representa um erro colossal.
Primeiro, porque indicia uma preocupante tendência para o global religious profiling, que exala um incomodativo odor a racismo. Nos últimos dias diversos comentadores viram-se na obrigação de referir o óbvio: o Dubai é um exemplo do que se pretende, em termos de regime político no mundo árabe. Os islamitas devem estar a esfregar as mãos de contentamento: achavam que poderiam ser aceites se jogassem pelas regras “deles?” Aí têm a resposta!
Segundo, porque não é apenas um “sinal errado” para os aliados ocidentais no Médio Oriente: depois da “histeria amarela” que atacou os políticos americanos em 2005, a pretexto da compra da Chevron pela companhia petrolífera estatal chinesa, os políticos americanos estão a dar um conselho muito claro aos estrangeiros detentores de reservas da divisa americana: se pretenderem reduzir a vossa posição em dólares americanos, troquem-nos pelo que quiserem, mas não tentem trocá-los por capital físico americano. No dia 9 de Março o governador do Federal Reserve System, respondendo a dúvidas suscitadas por um senador democrata sobre o desequilíbrio das contas externas, disse:In the absence of a shift in market perceptions of the relative attractiveness of U.S. and foreign assets, government policies would likely have only limited effects on the trade balance.
Ben Bernanke conta com o razoável crescimento da produtividade média e com a solidez institucional do sistema financeiro para continuar tranquilo quanto à “atractividade” comparativa dos activos americanos para os investidores estrangeiros. Não estaria certamente a contar com os esforços de sabotagem, exercidos em uníssono por uma colecção bipartidária de ignorantes, cegos por um calculismo míope das vantagens pessoais a retirar da conjuntura política. Uma quebra significativa do influxo de capitais — a contrapartida do enorme deficit externo americano — poderá provocar uma forte e súbita desvalorização cambial do dólar americano e uma subida acentuada da taxa de juro. Este pode muito bem ser o interruptor que desliga o motor do crescimento económico.
Terceiro, paradoxalmente, a eventual concessão da gestão portuária à Dubai Ports World poderia resultar num aumento da segurança portuária, nos EUA e a nível global. Num importante artigo publicado no The New York Times em 28 de Fevereiro, Stephen Flynn e James Loy explicavam como (destaques adicionados):Washington should embrace Dubai Ports World's offer to provide additional guarantees to protect the five American terminals it wants to run. The company should agree to install scanning and radiation detection equipment at the entry gates of its 41 terminals in the Middle East, Europe, Asia, North America and South America within the next two years.
O Senado perdeu uma excelente oportunidade para ajudar a diminuir o risco de terrorismo nuclear. Em matéria de segurança de cargas e contentores, Hillary e os heróis tribunícios de Capitol Hill mereciam uma estrondosa salva de chutos e pontapés.
By making this commitment, the company could address head-on the anxiety of American lawmakers, governors and port city mayors that is fueling the uproar. (...) Hutchison Port Holdings, a Hong Kong-based company that is the world's largest container terminal operator, would probably join Dubai Ports World in putting Hong Kong-style inspection systems in place within its 42 ports. Hutchison's chief executive, John Meredith, is an outspoken advocate for improving container security and has championed the Hong Kong pilot program, which runs in one of its terminals.
Hutchison Port Holdings along with PSA Singapore Terminals, Dubai Ports World and Denmark's APM Terminals handle nearly eight out of every 10 containers destined for the United States. If they agreed to impose a common security fee of roughly $20 per container, similar to what passengers are now used to paying when they purchase airline tickets, they could recover the cost of installing and operating this system worldwide. This, in turn, would furnish a powerful deterrent for terrorists who might be tempted to convert the ubiquitous cargo container into a poor man's missile.
A próxima asneira?
Ainda a tinta do acordo assinado entre os executivos americano e indiano não tinha secado e já se erguia o clamor de “vozes preocupadas” com as “implicações” do fornecimento de tecnologia nuclear pelos EUA à Índia, para produção de energia.
A revista The Economist, no seu editorial principal desta semana considera-o “perigoso” e apela ao Congresso americano para que vete a iniciativa presidencial. Outro declararam-no “imoral” por ameaçar a sobrevivência do Tratado de Não Proliferação Nuclear (NPT). Qual a estranha razão que pode levar alguém a investir um tratado que consagra uma situação arbitrária e assimétrica em padrão de moralidade? A resposta é a mesma do costume: a cegueira anti-Bush.
O tratado de não proliferação não deve ser descartado, embora o argumento de que constitui um “padrão moral” seja ridículo. Mas o acordo nuclear entre americanos e indianos tem uma enorme importância e interesse geopolítico, não apenas para os directamente envolvidos, mas para a estabilidade de toda a região asiática. Henry Kissinger, o príncipe dos conselheiros mas certamente que não um membro do clube de fans do presidente americano, deu há dias uma aula de geopolítica sobre este assunto. O International Herald Tribune fez o favor de publicar as notas da prelecção. Os editorialistas do The Economist devem estudá-la com atenção, se quiserem perceber por que razão a dita lhes falhou completamente nesta matéria.
Os termos do acordo assinado entre os governos americano e indiano podem e devem ser melhorados: Ivo H. Daalder e Michael A. Levi, que também não pulam de alegria com a simples menção do nome do presidente, explicam porquê e de que forma. Para que isso seja possível, o Senado precisaria de prestar um valioso serviço aos EUA e à segurança internacional. Como? Concertando a sua acção com a Casa Branca e reencenando a velha mas eficaz rábula do good cop, bad cop.
Neste bluff, o Senado faria o papel do “polícia mau,” pressionando a presidência a negociar com a Índia termos do acordo mais favoráveis do que os que estão presentemente sobre a mesa. Os recentes acontecimentos não permitem grandes expectativas. Se o Senado americano vetar este acordo será porque uma boa parte dos seus membros terá perdido definitivamente qualquer noção do que se espera de representantes eleitos. A proliferação nuclear não é tão perigosa como a proliferação da ignorância e da cupidez.
Polaroids de figuras extintas
Andrew Johnson foi vice-presidente de Abraham Lincoln. No dia da tomada de posse discursou manifestamente embriagado, para embaraço geral dos presentes e, em particular, do presidente eleito. Entre outros dados peculiares da sua carreira política, foi o primeiro vice-presidente a suceder a um presidente assassinado; foi também o presidente responsável pela aquisição do Alaska à Rússia e foi ainda o primeiro presidente americano a ser alvo de um processo de destituição do cargo. Um dos episódios mais interessantes desta presidência acidental e acidentada é pouco conhecido e aconteceu no decurso da tentativa de destituição.
Johnson era detestado pelos membros do seu próprio partido republicano, em grande parte por ter prosseguido a política de reconstrução dos estados sulistas iniciada por Lincoln. Em 1868, a Câmara dos Representantes aproveitou uma decisão presidencial de constitucionalidade duvidosa e aprovou uma moção de destituição. Para ser efectiva, a moção necessitava ainda dos votos favoráveis de 2/3 do Senado. O voto decisivo para a obtenção dos desejados 2/3 coube a Edmund G. Ross, que fora nomeado em 1866 para um lugar do Senado. A opinião pública estava maioritariamente contra o presidente Johnson e Ross detestava-o pessoalmente. No entanto, apesar da opinião pública, da intensa pressão partidária e das suas próprias opiniões pessoais, Ross não votou favoravelmente a moção, por entender que não havia fundamento constitucional para a destituição do presidente.
A decisão de Ross revela um elevado sentido do dever ético e politicamente Ross tinha razão: o fundamento da moção de destituição era a violação pelo presidente Johnson de uma lei do Congresso, que veio a ser declarada inconstitucional pelo Supreme Court em 1926. Mas a razão só lhe foi reconhecida postumamente: Ross morreu em 1907. Quando teve de decidir o sentido do seu voto crucial na moção de destituição, Ross sabia que estava a condenar a sua carreira política. No resto da sua vida foi politicamente ignorado e experimentou grandes dificuldades financeiras.
Recordo este episódio a propósito da morte de John Profumo, na semana passada. Profumo era secretário de Estado de Guerra do governo britânico em 1963, quando constou publicamente o seu envolvimento com Christine Keeler, uma jovem muito animada e com especial apetência para pendurar peças de lingerie nos candeeiros de tecto — desporto que praticava frequentemente na companhia de Profumo e de um adido naval soviético. As potenciais implicações de segurança puseram termo à carreira política de Profumo.
No entanto, estes acontecimentos são apenas o prólogo de uma notável história de redenção, relatada por Simon Heffer: John Profumo, um dos últimos exemplos de decência moral na política. No dia seguinte a ter resignado ao seu lugar na Câmara dos Comuns, Profumo apresentou-se em Toynbee Hall, uma instituição de caridade do East End, zona de Londres então especialmente depauperada. A sua primeira tarefa foi lavar o chão. Durante mais de 40 anos aí permaneceu, efectuando regularmente trabalho social de diversas naturezas. Há muito que o profumo di scandalo se dissipou e perdurará a memória de um homem decente.
Em momentos politicamente importantes Ross e Profumo fizeram o que tinham a fazer e não recearam o que provavelmente os esperava daí em diante: são exemplos de coragem e de responsabilidade pessoal. Mas são também personagens de um mundo perdido: o mundo anterior ao “desaparecimento” da Ética.
Sem esse “travão invisível,” a atitude geral de obediência acrítica à lei, ao regulamento e ao chefe é um convite ao abuso de poder. O interesse público confunde-se com a “razão de Estado” e esta com a conveniência dos que temporariamente exercem o poder político. Tal como sublinha Simon Jenkins, as novas formas de despotismo estimulam o espírito justicialista entre os jornalistas. Não se queixem.
por FCG @ 3/16/2006 09:06:00 da manhã
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