O homem que era quinta-feira
Keep your eyes on the ball
I don't quite have the skills yet —comentário de George W. Bush, ao ser atingido por uma bola, no decurso de um jogo de críquete com elementos da selecção paquistanesa.
A sensação de estar no centro de um jogo complicado, onde as reacções dos outros intervenientes são por vezes inesperadas e que o público compreende apenas parcialmente, não deverá ser totalmente estranha para George W. Bush. O simulacro de jogo de críquete parece uma metáfora do seu segundo mandato presidencial e Bush, aparentemente, não tem mesmo muito jeito para o “jogo.” Passa a maior parte do tempo a olhar para o sítio errado (o Iraque) e não dá a devida atenção às jogadas realmente importantes. Mas será que o “deficit de atenção” é do jogador?###
A recente viagem do presidente americano à Índia e ao Paquistão fornece um bom exemplo. Os chefes dos executivos americano e indiano assinaram um acordo de fornecimento de material nuclear para utilizações civis. Nenhum acordo semelhante foi assinado no Paquistão.
Uma implicação importante deste facto é o fim da simetria com que o executivo americano tratava os programas nucleares dos dois países, que tinham recusado explicitamente o Tratado de Não Proliferação Nuclear. O governo indiano receou sempre uma exigência uniforme do termo dos programas nucleares paquistanês e indiano —a lógica típica do raciocínio “realista,” sempre dominado pelo balanço de poderes.
Mas a Índia é uma democracia estável e o Paquistão é, desde 1999, uma ditadura militar. Durante os anos 80 as “necessidades” geopolíticas da Guerra Fria (uma distorção grosseira da lógica da “contenção” proposta por George Kennan) determinaram o consentimento ocidental ao apoio explícito dado pelo Paquistão a grupos fundamentalistas islâmicos, então considerados “combatentes da liberdade” na guerra do Afeganistão. Tente adivinhar o nome, paradeiro e actividades actuais desses valorosos combatentes da liberdade (a única resposta com direito a prémio é à segunda pergunta). Sem a complacência ocidental, também alguns "negócios nucleares" paquistaneses teriam sido evitáveis.
Os riscos de proliferação e cedência nuclear que os arsenais indiano e paquistanês colocam não são comparáveis. Ao propor um acordo deste teor apenas ao governo indiano, o executivo americano dá um sinal importante: a diferença fundamental não está no tipo de armamento, mas sim na natureza do regime político. Uma democracia estável e consolidada não representa, em princípio, um risco de segurança. Por outro lado, o caso paquistanês mostra que um regime determinado a conseguir a arma nuclear provavelmente consegui-la-á.
O jogador parece não ter muito jeito, mas o defeito está nos olhos dos espectadores. Esta “bola” de Bush, vista com atenção, tem um efeito muito especial: é uma Iranian curve ball.
Em termos geopolíticos, a aproximação entre a Índia e os EUA poderá ter efeitos de longo prazo tremendamente importantes. Imagine-se o potencial de criação de riqueza de uma zona de comércio livre impulsionada pelos EUA e Reino Unido, eventualmente fartos do empobrecimento colectivo da União Europeia, associando a Índia e as restantes democracias liberais de língua inglesa: Austrália, Canadá, Nova Zelândia... As condições geopolíticas para a viabilidade de uma tal ideia vão-se definindo. Essa associação, não o Iraque, poderia ser o legado mais importante da presidência Bush.
Quem se arrisca a ficar de fora desse consenso liberal emergente são os países da Mitteleuropa e os satélites gravitacionais do socialismo europeísta falido. Por isso, em matéria de falta de jeito para o “jogo,” a minha sugestão é: keep your eyes on the ball, and don’t judge the player by his style.
Terrorismo = capitalismo + globalização?
Por curiosidade pessoal e interesse académico, procurei livros sobre a organização terrorista IRA nas principais livrarias de Dublin. Comecei pela Hodges & Figgis e pela Waterstone’s, mesmo em frente, do outro lado da rua. Na organização temática dos títulos disponíveis na Hodges & Figgis consta uma secção sobre terrorismo. Estão aí, certamente. Não estavam. A dita secção é contígua à secção de política e os critérios de classificação de ambas são, no mínimo, estranhos.
Entre os títulos avulsos, a secção de política é dominada pelos livros de Noam Chomsky e pelos livros sobre os livros de Chomsky, em quantidade suficiente para o declarar uma pandemia literária. Para além de Chomsky, destacam-se outros salientes críticos do capitalismo e da globalização: Jon Elster, com Alternatives to Capitalism, Making Sense of Marx e Naomi Klein, com Fences and Windows.
A secção de terrorismo é ainda mais estranha. Para além da ausência conspícua de livros sobre o IRA, há uma profusão de livros sobre a vasta “conspiração” neo-conservadora. O mais recente e inenarrável livro de Robert Fisk, The Great War for Civilisation: The Conquest of the Middle East, tem abundante concorrência para o troféu de melhor teoria da conspiração. Entre os candidatos principais está o livro de James Risen, jornalista do New York Times, State of War: The Secret History of the C.I.A. and the Bush Administration, ou o mais simples mas também mais eficaz Bushit, de Jack Huberman.
Uma alma que passeie desprevenidamente por entre os escaparates destas duas secções ficará convencido que as eleições presidenciais de 2000 nos EUA marcaram o início de uma nova “era das trevas” e puseram em marcha uma conspiração global, coordenada pelo “terrorista” George W. Bush, com o fito de impor ao resto do mundo o sistema de exploração capitalista. Contra esta sinistra corporação erguem-se as vozes de alguns —poucos— heróis esclarecidos, que anunciam o fim da exploração capitalista e o advento do miraculoso marxismo. O papel da Al Qaeda e demais jihadistas nesta trama não é claro. Parecem ser uma consequência da abertura do sexto selo, mas, se a memória não me atraiçoa, a fúria de Deus dirigia-se aos que haviam assassinado cristãos.
A estranha selecção de livros sobre “terrorismo” quase me faz ignorar a edição mais recente de Peter Bergen: The Osama bin Laden I Know: An Oral History of al Qaeda's Leader. Desconfiado, tento adivinhar o teor: será uma tentativa de “humanização” do monstro; outra negação da possibilidade de existência do Mal, para sossego das cabecinhas impressionáveis? Terá como sequela Xbox buddies: Ayman al-Zawahiri and me? Apesar da desconfiança e porque Peter Bergen não costuma apreciar maluquices conspiratórias, optei por comprar um exemplar. Ainda não terminei, mas trata-se de um livro excelente, baseado numa prodigiosa quantidade de informação. A CNN está a concluir a adaptação a documentário.
Na liga dos lunáticos militantes, Paul Krugman causa-me um particular desconforto. Krugman foi em tempos um economista interessante. Hoje é uma espécie de upgrade alfabetizado de Michael Moore.
Krugman, que já se esqueceu de algumas coisas, vive obcecado pela singular ideia da conspiração montada pelos “homens do presidente.” Esta sugestão, que adquiriu estatuto de dogma político para muitos dos americanos democraticamente derrotados, leva-o a interpretar todas as medidas políticas de que discorda como “subversões” do regime político, das contas públicas, da política externa e de tudo o mais. A sua mais recente compilação de crónicas (The Great Unraveling: Loosing Our Way in the New Century) é um manual da suspeição. Os sinistros Cancer men, que durante a noite o visitam em pesadelos, têm muitos amigos influentes no sector privado — na Enron, por exemplo. Todos trabalham infatigavelmente para reduzir a escombros o paraíso clintoniano que era a América antes das eleições presidenciais de 2000.
Krugman considera a sucessão por vezes surpreendentemente aleatória de (neo) conneries do executivo americano como um plano deliberado para apagar da história o “mundo liberal” e não hesita em identificar George W. Bush como o génio malévolo que dirige o gigantesco polvo global. É verdadeiramente estranho que o colunista do New York Times não se aperceba da incongruência fundamental existente na atribuição da autoria de uma tão complexa urdidura —the greatest conspiracy against the greatest number— a um homem que, a avaliar pelas crónicas do mesmíssimo Krugman, terá um QI comparável ao duma ervilha.
Joseph Schumpeter afirmou que a democracia liberal baseada no sistema de mercado era o único sistema político-económico capaz de criar os seus próprios opositores. As livrarias de Dublin parecem dar-lhe razão: a crítica do capitalismo e da globalização tornou-se um negócio lucrativo e ironicamente Naomi Klein, Noam Chomsky ou Paul Krugman são hoje empresários capitalistas extremamente bem sucedidos no mercado global. Os livros sobre o IRA? Estavam na secção de História. Evidentemente.
O elemento absorvente da compreensão
Em dia de tomada de posse do novo Presidente da República, um breve comentário sobre Jorge Sampaio, que se aliviou de mais algumas confidências nos últimos dias do mandato. Entre outras coisas, explicou aos portugueses que “hoje compreende dez vezes melhor o Eng.º Guterres.”
Acredito. Como acreditaria igualmente se o Dr. Sampaio tivesse anunciado que compreendia hoje “cem vezes melhor” o Eng.º Guterres do que o compreendia ontem, ou noutro momento qualquer da sua vida. Aliás, estou disposto a generalizar a minha credulidade sobre os progressos de compreensão do presidente cessante a qualquer personalidade ou fenómeno, e a admitir “factores de progressão” de ordem de grandeza ilimitada.
É que a natureza multiplicativa dos “progressos” do Dr. Sampaio, em matéria de entendimento político está —infelizmente— limitada por um pequeno mas fatal inconveniente. Sem querer (ou necessitar de) elaborar muito, limito-me a chamar-lhe o elemento absorvente da compreensão.
por FCG @ 3/09/2006 09:16:00 da manhã
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