A história do ateísmo é conhecida - os factos estão estudados, foram analisados e comentados por estudiosos das mais variadas orientações. Sabe-se dos atentados à vida, à liberdade e à propriedade (e não só). De há alguns séculos a esta parte este foi o tom oficial (guilhotinas, proibições, expulsões, nacionalizações, colectivizações, saltos em frente, revoluções culturais, campos de concentração, gulags, laogais, campos de morte, extermínios, holocaustos).
Também se conhece bem a história das perseguições e os efeitos tremendos que estas e convivência centenária com a intolerância aportaram (vejam-se os efeitos que a expulsão das ordens religiosas teve sobre a qualidade do ensino em Portugal e o impulso à estatização do mesmo que daí resultou). A história do ateísmo, certamente, não se resume à Perseguição mas é impossível compreender uma sem a outra - e o caso português, neste particular, constitui um verdadeiro case study (Vd. por exemplo história de Portugal desde o Marquês do Pombal até à República - prisões, proibições, expulsões, nacionalizações).
Evidentemente que existiram no seio do ateísmo opiniões que não se subsumiam na corrente oficial e principal - mas, as toleradas, eram pontuais, avulsas e nunca beliscaram o discurso tradicional. Quando, por desventura, o faziam os seus autores eram severamente punidos. (vejam-se as reacções à proposta de Leonardo Coimbra – ministro da educação durante a República - sobre as escolas religiosas).
Eram essas manifestações, de algum modo discrepantes, verdadeiramente importantes no seu tempo? Influenciaram decisivamente as opiniões coevas? Alteraram o modo de agir dos ateus?
Não.
Essas visões oscilavam entre as excentricidades permitidas e as heresias castigadas. Mas umas e outras não afectavam a corrente dominante e essa permanecia intolerante e visceralmente contrária à Religião e à Liberdade. Não fizeram escola nem deixaram qualquer lastro nas expressões oficiais da organização estatal. E se o Estado acabou por mudar (um pouco) a sua visão das coisas tal foi constrangido por fenómenos políticos, culturais e históricos que impuseram os valores da modernidade ao arrepio da vontade declarada dos seus mentores ateus.
Mas, sobretudo para os liberais-anti-católicos (lamentável conceito que conceptualmente diagnosticarei nos próximos tempos), a tentação é enorme quando se descobrem textos que, aqui e além, parecem emparelhar a evolução do pensamento ateu com valores da nossa própria contemporaneidade. De repente, a vertigem da fábula torna-se irresistível. Tudo é virado do avesso, o sentido histórico das coisas é confundido e os perseguidores são pintados como os mais ardorosos defensores das causas das suas vítimas:
Os revolucionários de 1789 guilhotinavam católicos ? Cá está, o ateísmo sempre pugnou pelo Libertação !
Há um trecho do "Capital" em que se lê que a religião é o Ópio do Povo? Não restam dúvidas, o liberalismo clássico e individualista assenta directamente em Marx ! (Update: Vd. este comentário)
Descobriu-se um extracto da autoria de Afonso Costa no qual ele profetiza que a Igreja desaparecerá de Portugal em 2 gerações ? Está claro que foi a República que esteve na base da evolução em direcção à Liberdade e da Democracia !
O CAA diz que existe uma relação negativa entre catolicismo e liberdade sem nunca provar as suas afirmações, nem responder às minhas objecções ? Pronto, eis um libertarian (?) e a prova acabada que o ateísmo é o fundamento da Liberdade.
O CAA afirma que não existem diferenças entre um membro da Opus Dei e um fundamentalista islâmico? Eis a prova que os ateus são pessoas Racionais.
Muitos ateus já caíram nessa atarantação histórica e conceptual. Trata-se de um misto de pio "wishful thinking" com uma aliciante, mas inapelavelmente pontual, aliança estratégica entre os defensores da Liberdade, do Indivíduo e do Mercado com os opositores institucionalmente organizados da Cruz - embora, tantas vezes, a eventual generosidade da ideia seja fatalmente prejudicada por uma volitiva falsificação interpretativa dos factos.
(Designo este fenómeno como "equívoco Guilhotina" pela pouca exuberância das referências à revolução francesa que, logicamente, deveria ser o berço doutrinal destas posições, e porque os seus defensores perdem a cabeça sempre que vêm um crucifixo.)
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