9.8.05

Atlântico (1) - Vasco Gonçalves e Álvaro Cunhal

Por coincidência, o general Vasco Gonçalves e o Dr. Álvaro Cunhal desapareceram na mesma semana. Foi como se até a morte os quisesse continuar a comprometer. Desde há trinta anos que os seus inimigos tratavam o líder do PCP e o chefe dos governos provisórios como duplos um do outro. A relação entre os dois foi a base do descrédito de cada um deles. Condenou Vasco Gonçalves ao inferno no Verão de 1975, e Cunhal ao purgatório nos anos seguintes. No caso de Vasco Gonçalves, a sintonia com Cunhal provava que não era, ao contrário do que dizia, o militar revolucionário, puro e sem partido que em Abril de 1974 fizera uma revolução para todos. No caso de Cunhal, o apoio a Vasco Gonçalves demonstrava que não regressara a Portugal para viver em democracia. Não admira, por isso, que os dois tivessem tido o cuidado de manter uma certa distância entre si. ###

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Na morte, Cunhal e Vasco Gonçalves não tiveram o mesmo tratamento. A imprensa deu ao primeiro o destaque devido a um dos ídolos da tribo, enquanto o segundo foi discretamente deixado nas páginas interiores e segundas metades dos telejornais. Até o Estado preferiu pôr luto pelo chefe de partido, e esquecer o primeiro-ministro. É difícil escapar à sensação de que houve aqui uma injustiça, ou um erro. Os dois homens tinham oito anos de diferença entre si e curricula muito diferentes. Um fez carreira nas forças armadas do Estado Novo, e o outro foi um revolucionário profissional toda a vida. Em 1974, as inclinações políticas de um eram desconhecidas, e o outro estava muito claramente integrado na “diplomacia” subversiva da União Soviética. Mas faziam os dois parte do mesmo mundo, e um não se pode perceber sem o outro. Sem Cunhal, Vasco Gonçalves teria talvez passado apenas por excêntrico; sem Vasco Gonçalves, Cunhal seria hoje pouco mais do que um nome reservado para as mais minuciosas histórias do antisalazarismo. O “camarada” nunca teria existido sem o “companheiro”.

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Como aconteceu a Costa Gomes, a rejeição de Mário Soares e dos outros políticos não deixou a Vasco Gonçalves alternativa ao carinho comunista. Ficou a viver entre bustos de Lenine, fotografias de Fidel e cravos vermelhos. O PREC também comprometera Cunhal, fazendo dele uma figura incompatível com uma democracia parlamentar de tipo ocidental. Não lhe restou outro recurso senão tentar descobrir novos Vascos Gonçalves, sempre convencido de que a democracia portuguesa não tinha de ser como as outras: procurou uma réplica entre os últimos conselheiros da revolução, e quase se convenceu que tinha encontrado um substituto no comandante que derrotara os “esquerdistas” em Lisboa, em Novembro de 1975. O eanismo foi o último esforço de Cunhal para dar influência ao PCP através de um militar patriota. Ficou assim provado que para ser “Vasco Gonçalves” nem era preciso deixar de ser anti-comunista. Em 1987, o colapso do eanismo, mesmo antes do Muro de Berlim, determinou o fim político de Cunhal.

Quando se nota que os seus “15 minutos de fama” duraram apenas o tempo que as forças armadas precisaram para retirar de África, é difícil escapar à suspeita de que o “companheiro” e o “camarada” foram apenas efeitos secundários de uma tragédia distante. Ao contrário do que se diz, a derrocada da URSS salvou Cunhal, ao torná-lo inofensivo. Aqueles a quem ele tinha assustado no auge do seu poder começaram agora a achar graça à sua falta de arrependimento. No funeral, todos disseram bem, um cenário absolutamente imprevisível em 1975. Cunhal, que não viveu como quis, pôde assim morrer como quis.