O regresso do "Santo"
Bob Geldof é um ignorante, com pretensões a “santo pagão” do internacionalismo neo-marxista, que se entretém flagelando sistematicamente as sociedades ocidentais com os estigmas da “culpa”, da “opressão” e da “exploração”. ### This story is almost completely wrong. The only part that is true is that differences in per capita income are extreme. All the rest is false. Globalization is not responsible for the poverty of the third world. Corrupt and inefficient governments of developing countries are. ... There is no evidence that increasing foreign aid to government of developing countries improves their economic performance and lifts them out of poverty permanently. In fact, more aid is likely to increase corruption, because it augments the amount of resources over which elites fight over. The same goes for debt forgiveness: its only effect is to encourage countries to borrow more and more, often for the benefits of local elites. ... Those who really care about reducing poverty should be much more willing to put the blame in the right place: the government and the bureaucracy of many developing countries, especially in Africa and Latin America. Traditionally, instead, foreign aid has paid no attention to the virtues of the receiving countries and has not discriminated in favor of the “good governments”. ... Before giving more aid ort debt forgiveness two conditions need to be met. One is an “institutional conditionality.” Only governments that show some serious progress in reducing inefficiency, robbery of public property and corruption, should receive any aid. ... Finally, other polices of rich countries may be much more beneficial than aid. The main one is to stop protecting the agriculture of the rich. In fact the worst enemies of the poor countries of the world are the farmers of the rich countries. Defeating the lobby of the French farmers should be the top priority of the pro poor coalition of Europe.
"Saint Geldof" foi um músico medíocre, que se distinguiu no final dos anos setenta na liderança de uma banda de mentecaptos auto-intitulada Boomtown Rats, que tiveram em I Don’t Like Mondays o seu maior sucesso. A letra da canção —um hino à preguiça e ao absentismo escolar— permitia já antever a curiosidade intelectual de Geldof e o seu entendimento intuitivo dos problemas mais sérios que afligem as sociedades humanas: And school's out early and soon we'll be learning/ And the lesson today is how to die./ And then the bullhorn crackles/ And the captain crackles/ With the problems and the how's and why's.
Ainda hoje esta pérola da inteligência é recordada pela sua metamorfose elegíaca: uma estudante liceal americana de dezasseis anos decidiu pegar na arma do pai e desatou a disparar indiscriminadamente sobre a sua escola, matando duas pessoas e deixando outras oito feridas. Quando foi detida e interrogada sobre os motivos do seu comportamento limitou-se a reproduzir o refrão da canção: Tell me why?/ I don't like Mondays. Vários anos depois, Michael Moore (em Bowling for Columbine) apontaria o seu dedinho sapudo e demagogo às associações que defendem o direito (constitucional) à posse de armas nos EUA, exigindo legislação proibitiva nesta matéria, mas por um inexplicável lapso de memória esquecer-se-ia por completo deste incidente percursor de Columbine e de elogiar o sentido de responsabilidade cívica de muitas estações de rádio americanas que se recusaram a passar a canção dos “ratos de subúrbio”.
Geldof também fez o possível por esquecer o assunto e iniciou o seu tirocínio de santo internacionalista. Em 1984 reapareceu à frente do projecto Band Aid, com o célebre Do They Know it’s Christmas?. A especial propensão para a compreensão de fenómenos políticos complexos que revelara anos atrás atingia um novo patamar de excelência e surgia aliada a uma revisão radical da geografia africana: And there won't be snow in Africa this Christmastime/ The greatest gift they'll get this year is life (Oooh)/ Where nothing ever grows/ No rain or rivers flow/ Do they know it's Christmastime at all?
Daí ao Live Aid (no ano seguinte) foi um instante. Na África subsaariana morre-se de fome, sobrevive-se em condições inimagináveis, sofre-se com epidemias crónicas que regularmente se transformam em pandemias. Só um estupor considerará este estado de coisas como “aceitável” —é um drama moralmente repugnante. Infelizmente, o sofrimento humano é (também) a plataforma perfeita para a propagação da arrogância da moralidade. Ironicamente, um dos maiores triunfos do capitalismo —a extraordinária capacidade de inovação nas tecnologias de comunicação e de redução sistemática no respectivo custo de acesso e utilização— permitiu a emergência de um cosmopolitismo superficialmente consciencioso e ideologicamente marxista, que confunde moral com uma neo-beatice afectada e que toma a exibição da miséria e do sofrimento como justificação suficiente para a sua auto-complacência.
É importante perceber que Geldof, tal como Bono, é percursor de uma congregação de hipócritas que ambos provavelmente considerariam indesejável, se reflectissem sobre isso. Ambos recusam-se a assistir, passivamente, ao sofrimento humano. No entanto, não parecem aperceber-se do seu papel instrumental na construção de uma “cultura de espectadores”, onde o sentimentalismo lacrimoso é a droga que garante a absoluta passividade. Muito menos demonstram ter a mínima consciência de como isso é frontalmente contrário à melhor tradição política e estética da Irlanda onde ambos nasceram: a sistemática repetição televisiva da miséria e do sofrimento em África gera indiferença perante o horror e cria uma sensação difusa e completamente distorcida de culpa (se temos meios para filmar a desgraça alheia também temos meios para a impedir, não é?).
A partir daqui o processo é razoavelmente linear. Tal como sublinharam Alberto Alesina e Francesco Giavazzi, em The Politics of Foreign Aid, de Setembro de 2002:The “story” put forward by the pro aid movement is simple and appealing. Differences in income per capita in the world are extreme; globalization is increasing income inequality; the poor are becoming poorer and poorer and they starve to pay their debt. So they need more aid and more debt forgiveness, since the rich of the world get rich at the expenses of the poor. Aid and debt forgiveness will lift the poor countries out of poverty.
O “Santo” regressa agora, vinte anos depois, com o Live 8. As diferenças são, se possível, para pior. Há vinte anos, o Live Aid conseguiu reunir 150 milhões de dólares, que, de uma forma ou de outra, terão sido enviados para África como “ajuda humanitária”. A remake de 2005 não tem como objectivo angariar receitas —pretende apenas “chamar a atenção” para o “problema” e para a “responsabilidade” do G8. É a “cultura do espectador” no seu apogeu. Com a inteligência que sempre exibiu e a capacidade para reduzir problemas complexos à sua expressão mais simples (ou simplória), Geldof limitou-se a afirmar que "the G8 leaders have it within their power to alter history".
Poucas iniciativas se poderão gabar de uma tão grande mistura de oportunismo, ignorância, hipocrisia —o ex-ministro da cultura francês, Jack Lang, “aderiu” de imediato à iniciativa, afirmando a "intolerabilidade do sofrimento dos pobres”— e branqueamento da gigantesca e criminosa corrupção de muitos dos governos africanos. Podia dar dúzias de referências a quem desejar começar a perceber um pouco das verdadeiras causas da miséria africana. Porque o caso do Zimbabwe é dos mais elucidativos, sugiro que comece por esta recensão, ou por qualquer um dos livros nela mencionados.
Quanto a Geldof, esperar que vinte anos fossse tempo suficiente para que tivesse aprendido (pelo menos) uns rudimentos de economia seria talvez demasiado. Já só lhe peço que esteja calado.
por FCG @ 6/01/2005 02:44:00 da tarde
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