10.4.05

João Paulo II, a morte de Deus e o último homem

Nietzsche foi talvez quem melhor percebeu o século XX, mesmo tendo vivido apenas parte do seu primeiro ano. Mas deve-se-lhe a antecipação do homem típico do século, o "último homem". Aquele para quem "Deus morreu" e que no lugar de "Deus" instaurou pequenos ídolos, como a ciência e a técnica, ou certos "providencialismos seculares", como o socialismo. Pensa-se muitas vezes que a "morte de Deus" foi para Nietzsche uma constatação libertadora. Muito pelo contrário, tratou-se de uma descoberta desesperante. A sua filosofia pouco mais é do que a tentativa de encontrar um substituto para "Deus". Feliz com a dita morte ficou apenas o "último homem", para quem não há transcendência, mas apenas uma vida terrestre que, apoiada na ciência, na técnica e na organização social "perfeita", deve ser vivida sem risco ou contradição. Por isso, o "último homem" é o indivíduo apenas centrado na prossecução da sua felicidade. Ele é, portanto, o homem para quem nada existe para além do seu corpo e respectivo valor social. Perdidos os limites que Deus oferecia, o "último homem" é, também, o "homem-manada", à espera de se reunir com outros para seguir docilmente, como um escravo, o comando superior de um mestre. Disto resultou o mais terrível dos séculos a I e II Guerras Mundiais, o nazismo e o gulag bastam como antologia.

Eis o grande problema da Igreja no século XX lidar com este homem. João Paulo II terá sido talvez um dos seus representantes que melhor o conseguiu fazer. O que faz de si uma das figuras mais importantes do século.

(...)

João Paulo II não representou nenhum regresso ao passado. Antes representou uma tentativa, bem ancorada no século XX, de adequação dos valores cristãos à corrente idade democrática. Não ressuscitou qualquer passado remoto. Antes se inspirou na jurisprudência próxima do Vaticano II (e, mais indirectamente, de Leão XIII), a que adicionou certos elementos de fé radical. Perante a liberdade sem regras do "último homem", quis instaurar limites "constitucionais" (chamemos-lhes assim) a essa liberdade. Pode não se partilhar a fé (como acontece com este que aqui assina) e pode não se estar de acordo com tudo o que disse e fez (idem). Mas quem anda por cá a tentar não ser o "último homem", a tentar "reencontrar" Deus ou um seu "substituto", não pode senão sentir a morte de João Paulo II como a partida de um companheiro de busca.

João Paulo II fez um trabalho preparatório que a Igreja deveria agradecer, ao colocá-la em excelente posição para participar na famosa profecia de André Malraux depois do terrível século XX, caberia ao século XXI a difícil tarefa de "reintegrar os deuses" na vida humana. Mas certamente não o fará nem ajudará a fazer se sucumbir à facilidade de seguir o espírito que é o do tempo nalgumas partes do Ocidente, escolhendo um Papa transigente com o "politicamente correcto". Não é preciso ser crente para perceber que nem a Igreja nem o mundo teriam qualquer coisa a ganhar com isso.