Imprecisões
Muita gente à esquerda (para além de alguma comunicação social) ficou extremamente desiludida com a eleição de Ratzinger como Papa, neste caso, com o nome de Bento XVI. Compreende-se, afinal, na comunicação social, nos últimos dias, só se sabia caracterizar Ratzinger como um ultra-conservador (epíteto dos mais benignos ainda sim).
Assim, não é de espantar que, algumas horas após a sua eleição, aparece na internet o popular desporto de "pope bashing", por exemplo, em numerosos blogues esquerdistas norte-americanos (para os quais não faço ligações, por o mau-gosto e a estupidez serem demasiado evidentes). Também alguns blogues nacionais, entraram nesse desporto, embora, ainda assim (e reportando-me aos que li) ficando a milhas de distância do que circula pelas américas.###
Vem esta introdução a propósito desta entrada do meu amigo Jorge que diz o seguinte:Antes de ser o sucessor de João Paulo II, Ratzinger foi o sucessor de Torquemada, à frente da Congregação para a Defesa da Fé (ex-Santa Inquisição), responsável pela excomunhão dos suspeitos de heresia.
Ora, neste parágrafo o Jorge comete uma terrível imprecisão (que aliás Manuela Moura Guedes também cometeu): a de considerar a actual Congregação para a Doutrina da Fé como sucessora da Inquisição espanhola, ou como se a Inquisição tivesse sido só uma em toda a história.
Sem me quer alargar em considerações históricas, a Inquisição medieval foi fundada por Gregório IX, em Fevereiro de 1231, com a Constituição Incosutilem tunicam. Esta Inquisição estava sob comando papal e era, geralmente, confiada aos franciscanos e dominicanos. Mas esta Inquisição medieval declinou por volta do séc. XV.
Paulo III, em 1542, decide criar a Congregatio romanae et universalis Inquisitionis, vulgarmente conhecido por Santo Ofício. Esta sim é a antecessora da actual Congregação para a Doutrina da Fé. Embora devesse ser universal, esta Inquisição nunca exerceu jurisdição na Península Ibérica (nem na Sicília por esta estar dependente a Espanha). A sua actuação não passou muito da Península Itálica. Em 29 de JUnho de 1908, S. Pio X, pela Constituição Sapienti Consilio, mudou o nome para Sagrada Congregação do Santo Ofício. Por fim, em 7 de Dezembro de 1965, Paulo VI, pelo motu proprio Integrae servandae dá-lhe o nome actual.
Por seu lado, a Inquisição espanhola, como posteriormente a portuguesa, é uma instituição completamente diferente. É um tribunal especial fundado em Espanha por Sisto IV, em 1478, pela bula Exigit sincerae devotionis affectus, como resposta aos pedidos dos reis católicos Fernando e Isabel.
Esta Inquisição diferia da inquisição medieval devido à sua centralização absoluta sob um inquisidor-geral nomeado pelo Papa sob proposta do rei. Mas o rei tinha o poder de substituir inquisidores, o que alterava as relações de fidelidade dos mesmos. A dependência do rei acentuou-se posteriormente, sendo por isso a Inquisição espanhol um instrumento real para controlo do país. O mesmo se passou com a Inquisição portuguesa aliás. A Inquisição espanhola foi extinta em 1820. A de Portugal foi extinta em 1821 pelas Cortes Constitucionais (1812 havida sido suprimida a de Goa).
De qualquer modo, tudo isto só para dizer que Ratzinger nunca poderia ser um sucessor de Torquemada, pois tratam-se de instituições completamente diferentes.
Mas, obviamente, e descontando desde logo que a Congregação para a Doutrina da Fé tem pouco a ver com a instituição estabelecida em 1542, esta ligação a uma personagem sinistra como Torquemada faz parte deste "pope bashing" para passar a ideia que estamos na presença de um indivíduo, no mínimo, sinistro.
Se para isso tiverem que cometer imprecisões, que se lixe! Para eles isso não tem importância alguma.
por Rui Oliveira @ 4/19/2005 11:58:00 da tarde
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