31.3.05

Mitologia escandinava

Os socialistas agora no Governo de Portugal parecem ter como referência os feitos sociais e económicos da Escandinávia. Os países escandinavos representariam a concretização máxima do "Estado Social" europeu, o cume do sonho "social-democrata" da Europa do pós-guerra. Graças, para além disso, a um recente crescimento económico invejável, por lá existiria, portanto, crescimento sem o habitual receituário "neoliberal". Ou seja, ter-se-ia realizado o ideal ecuménico da riqueza com equidade.

###Isto corresponde, porém, largamente a um corpo de mitologia. O qual, tal como nas originais histórias mitológicas escandinavas, se pode subdividir em vários mitos mais pequenos. O primeiro é o de que os países escandinavos conhecem hoje um crescimento particularmente rápido. Na realidade, ele apenas brilha no contexto da Europa Ocidental, cujo ritmo geral é penoso. Se se destacam do panorama desolador da chamada "Europa continental", os países escandinavos permanecem casos pouco no-táveis quando comparados, por exemplo, com os anglo-saxónicos, particularmente a Irlanda e os EUA, mas também a Grã-Bretanha, a Austrália ou a Nova Zelândia. Sendo que muito deste crescimento constitui apenas uma recuperação da depressão por que pas- saram na primeira metade da década de 90. A Suécia e a Finlândia tiveram então a mais brusca quebra do rendimento per capita na Europa desde os anos 30, se exceptuarmos os antigos países socialistas.

O segundo mito é o de que o de-senvolvimento dos países escandinavos teria historicamente ocor-rido a partir dos anos 30, com a ascensão ao poder da social-democracia, a qual os teria retirado de uma triste e atávica miséria rural. A verdade, no entanto, é que a Escandinávia era já em princípios do século XX uma das regiões mais ricas do mundo, tendo aí chegado depois de um notável processo de crescimento na segunda metade do século XIX. Processo que nada deveu à social-democracia, mas a um enquadramento institucional liberal. Mesmo quando ascenderam ao poder nos anos 30, os partidos sociais-democratas preservaram grosso modo o quadro liberal anterior. Até à década de 50, os países escandinavos continuavam a ser um "oásis" de liberdade económica numa Europa cada vez mais estatizada. Foi apenas nos anos 60 e 70 que o quadro se inverteu. Só que nessa altura já eles tinham atingido o topo da tabela do desenvolvimento. Lugar de onde (se exceptuarmos a Dinamarca e a Noruega) foram caindo persistentemente até aos anos 90. A Suécia, por exemplo, era o quarto país mais rico do mundo em 1970, hoje é o 17.º, ao nível da Itália e não muito acima da Espanha.

Um terceiro mito é o de que a igualdade e o elevado bem-estar nos países escandinavos se devem à social-democracia. Na verdade, desde muito antes que a igualdade lá estava. Países pequenos (sendo o maior a Suécia, com uma população de oito milhões, o mais pequeno a Noruega com três, a Finlândia e a Dinamarca com cinco) e constituídos por populações étnica, social e religiosamente muito homogéneas (se exceptuarmos os aborígenes, que também ali sofreram o tratamento dos índios americanos), não precisaram da social-democracia para a atingir. E resta saber como serão capazes de integrar um número crescente de imigrantes islâmicos. Há bons sinais, mas uma onde recente de ataques a mesquitas aponta para tensões perigosas.

Um mito final é o de que eles continuam a ser sociais-democracias não reformadas. A verdade é que foram obrigadas a deixar de sê--lo, desde a tal crise dos anos 90. Privatizações sistemáticas, quebras substanciais da despesa pública e dos impostos, equilíbrio orçamental, aperto de critérios para a atribuição de subsídios de desempre-go, sistemas de segurança social parcialmente privatizados (Suécia) ou em vias de o serem (Dinamarca) ou em vias de o serem totalmente (Noruega), esquemas de vouchers (por aqui ainda vistos como um "horror neoliberal") para o ensino primário e secundário (Suécia), com possibilidade de extensão para o sistema de saúde, sistemas de saúde parcialmente privatizados, plena abertura ao investimento estrangeiro. Eis uma pequena lista das transformações por lá ocorridas. Se existe uma social-democracia não reformada, Portugal está muito mais próximo dela do que a Suécia.

E se algum crescimento moderado a Escandinávia tem conhecido, deve-o a estas reformas profundas. Convindo não esquecer que o seu crescimento está dependente de formas muitas vezes frágeis de inserção no mercado mundial a Noruega é um verdadeiro sultanato do petróleo sofisticado e sem wahabismo, a Finlândia é um país monoexportador, que vende telemóveis Nokia em vez de borracha ou bananas.

À falta de melhor, não seria mau que os socialistas no poder adoptassem este modelo, mas conscientes das suas mutações e fragilidades. Isto é, o verdadeiro modelo escandinavo. Que é muito diferen- te daquele que permanece vivo talvez apenas nas suas imaginações.