Para a compreensão dos estudos "científicos" sobre o Iraque publicados na Lancet (2)
Com a autorização do autor, publico um texto recebido por email no passado dia 11 sobre o mais recente estudo "científico" publicado na revista médica "The Lancet" sobre o número de iraquianos mortos em "consequência directa" da invasão.Pode-se ler no "Portugal Diário" de hoje que um estudo feito pela revista médica "The Lancet" prova que "mais de 600.000 iraquianos morreram desde o início da invasão do Iraque, em Março de 2003, em consequência directa da violência".
Adianta ainda o "P.D." que "os resultados baseiam-se em inquéritos efectuados entre 20 de Maio e 10 de Julho de 2006 junto de 1.849 famílias escolhidas aleatoriamente e com uma média de sete membros. Aos inquiridos foi perguntado se tinham sofrido a morte de familiares nos 14 meses anteriores à invasão de Março de 2003 e nos 14 meses seguintes.Os médicos iraquianos pediram certificados de óbito em 87 por cento dos casos e foram entregues os certificados correspondentes em 90 por cento dos casos."
Como médico com algumas noções de epidemiologia e, já agora, de como se manipulam números e estudos, gostaria de tecer alguns comentários:###
Em primeiro lugar, e como o próprio estudo refere, "69% das mortes resultaram sobretudo da violência étnica e intra-religiosa. Árabes contra árabes, sunitas contra xiitas..."
Mas como já sabemos que os americanos têm sempre a culpa de tudo, detenhamo-nos sobre outros aspectos:
1- Foram feitos inquéritos a famílias escolhidas aleatoriamente, mas onde? também nas zonas menos tocadas pela guerra? ou só nas mais violentadas?
2- Os inquiridos contabilizaram (em meados de 2006) o número de familiares mortos desde os 14 meses anteriores à invasão até aos 14 seguintes. Foram mortes confirmadas por atestados em 90% dos casos dos 87% solicitados, o que dá 79% de confirmações. Temos assim que em 600.000 há portanto 126.000 casos não confirmados.
3- As mortes não relatadas não puderam ser, obviamente, controladas por atestados. Isto quer dizer que nada nos garante não haver uma minimização do número de mortes antes da invasão, o que poderá distorcer grandemente o método de comparação "antes e depois".
4- Uma das mais óbvias desonestidades do “estudo” tem aliás a ver com a amostra: comparar 14 meses antes da invasão (em “paz”) com 14 meses a seguir (e portanto na fase em que houve guerra mais intensa e generalizada no terreno), e extrapolar os ditos casos desses 14 meses para os 28 meses seguintes, inflaciona, e de que maneira, os números.
5- Finalmente, todos sabemos que sempre que alguém morre vítima da violência bélica no Iraque isso nos é diligentemente comunicado pela generalidade da imprensa. Seria muito fácil essa mesma imprensa (ou algum curioso) dedicar-se a pegar nos jornais desde a altura da invasão e somar as mortes (só violentas e dos iraquianos, atenção).
Mas vamos supor, já atirando muito (mas muito) por alto, que desde Março de 2003 morreram em média diariamente 100 pessoas vítimas de atentados, bombas, (ou torturas dos americanos, pois claro!). Há muitos dias, como hoje, em que nada vem relatado, mas fica por conta dos outros...Teríamos assim, desde Março de 2003: 100(mortes/dia)x365(dias/ano)x3,5(3 anos e meio) = 127.750 mortes! Um bocadinho longe das 600.000...Como diz a outra: há coisas fantásticas, não há?
Já agora, fazendo as contas com os números do “estudo” da Lancet: 600.000 (mortes)/(3,5x365 dias) = 469 mortes por dia, ininterruptamente desde 2003!
A ser assim, e lendo a nossa imparcialíssima imprensa, até o Avante está vendido ao imperialismo americano!
Fernando Gomes da Costa
por André Azevedo Alves @ 10/13/2006 03:07:00 da tarde
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