Cinco Anos Depois
Logo após a derrubada do Muro de Berlim em 1989 e o esfacelamento da União Soviética em 1991 (com a concomitante dissolução do COMECON e do Pacto de Varsóvia), experimentou-se uma sensação de euforia e de alívio devido ao aparente fim da ameaça de mútua destruição nuclear. O término da Guerra Fria significava a vitória do mundo ocidental livre sobre o Leste comunista, a prevalência da democracia liberal sobre o totalitarismo opressor e a consolidação da economia de livre mercado em detrimento do modelo de planejamento econômico centralizado. Contudo, essa sensação de euforia não durou muito tempo. Se durante o período compreendido entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o 'anno mirabilis' de 1991 o "inimigo" dos valores ocidentais estava bem localizado e definido, a partir da fragmentação do Império Soviético a ordem internacional pulverizou-se e os efeitos dessa pulverização não tardaram a se fazer sentir. O mundo deixava para trás a estável bipolaridade da Guerra Fria e se tornava muito mais complexo e nebuloso.
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A década de 1990 foi marcada por diversos conflitos de caráter regional e natureza étnica, ao mesmo tempo em que novos temas começaram a surgir no âmbito da segurança internacional. Dentre as novas ameaças à segurança, podemos destacar a proliferação de armas de destruição em massa, a emergência e o fortalecimento de atores não-estatais (como por exemplo as organizações terroristas), a dificuldade de se combater o crime organizado, os impactos sociais das migrações (muitas vezes decorrentes dos conflitos intrarregionais) e os efeitos das mudanças ambientais sobre uma economia cada vez mais integrada e, portanto, cada vez mais interdependente.
Diante dessas e de outras ameaças, fazia-se necessário fortalecer os mecanismos de análise e de inteligência, consolidar os valores da liberdade e da democracia nos meios culturais e acadêmicos e, talvez o mais importante, era imprescindível que os Estados Unidos assumissem a liderança mundial de acordo com as suas capacidades econômicas e militares, proporcionando estabilidade hegemônica ao sistema internacional ou, pelo menos, fornecendo parâmetros sólidos de referência que não permitissem esquecer quais teriam sido as conseqüências se o fim da Guerra Fria tivesse sido diferente.
Há cinco anos, o mundo testemunhou um ato de barbárie que colocou em evidência várias características da ordem mundial pós-Guerra Fria sobre as quais, até então, teorizava-se mais do que se compreendia sensivelmente. Os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, perpetrados em solo norte-americano, concretizaram temores que até então só tinham sido vislumbrados em filmes de ação: o assassinato de milhares de civis através de atos de ódio e insanidade. Cinco anos depois, cabe reavaliarmos quais são as nossas prioridades, identificarmos quais foram as nossas falhas e assumirmos, sem receios, a defesa de nossos valores.
O Papa Bento XVI lamenta que o mundo se tenha tornado surdo a Deus. Fato é que o Ocidente despreza o sagrado, e a exclusão de Deus do pensamento e das ações ocidentais é exatamente um dos elementos a atiçar os temores de diversos povos orientais que vêem, na permissividade moral da nossa (pseudo)cultura contemporânea, uma ameaça a seus próprios valores e tradições. A imagem que temos exportado para o mundo não-ocidental através, por exemplo, dos nossos filmes e da nossa literatura, contribui para alimentar o ódio e a rejeição que o radicalismo islâmico sente em relação ao Ocidente. Devemos observar, ainda, que a secularização, o apego ao cientificismo e o abandono das tradições que conformaram a nossa própria identidade ocidental em nome da preservação de um novo e dubitável "valor" que atende pelo nome de "politicamente correto", estão no centro da fragmentação e vulnerabilização da nossa própria cultura. Sem o reconhecimento dessa falha, em pouco tempo simplesmente não teremos mais valores para assumir e defender, diante do avanço da pobreza do solipsismo no qual estamos nos fechando.
Não devemos, contudo, tentar entender os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 a partir de uma interpretação unicamente cultural. Na década que se seguiu à derrubada do Muro de Berlim, criou-se uma falsa ilusão de que o mundo estaria entrando em uma era "livre da ameaça do terror, mais forte na busca da justiça e mais segura na demanda da paz, uma era na qual as nações de todos os mundos, do Leste e do Oeste, do Norte e do Sul, podem prosperar e viver em harmonia". Essas palavras, proferidas por George H. W. Bush (também em um 11 de setembro, só que de 1990), refletiam uma certa sensação de segurança que não condizia com a realidade mais complexa da nova ordem mundial. Com a falência do comunismo, abriram-se novas e promissoras perspectivas, sem dúvida, mas ao mesmo tempo surgiram novos desafios diante dos quais não podíamos simplesmente relaxar e enfraquecer os mecanismos de análise e de inteligência que, em grande parte, foram responsáveis pela sobrevivência do mundo livre durante as décadas que se seguiram à Segunda Grande Guerra. Foi em grande parte devido a esse descuido que os terroristas que cometeram os atentados em New York e Washington conseguiram realizar parte do planejamento dos ataques e movimentar-se durante meses em território norte-americano.
Contudo, independente das questões técnicas relacionadas à segurança e à estratégia, poderíamos ter entrado realmente em uma era caracterizada pela paz, harmonia e prosperidade, só que para isso deveríamos ter prestado mais atenção à consolidação dos valores da liberdade e da democracia nos meios culturais e acadêmicos. Não bastava "ganhar" a Guerra Fria e cruzar os braços, havia que construir ativamente uma nova ordem mundial.
Os soviéticos utilizaram, em sua política externa, métodos sistemáticos para integrar a propaganda aberta com técnicas políticas encobertas, às quais chamavam de "medidas ativas". Dentre essas medidas, a propaganda dissimulada e a desinformação objetivavam induzir a opinião pública mundial a crer que a fonte dos conflitos internacionais eram os Estados Unidos, enquanto a União Soviética apresentava-se gloriosamente como baluarte da paz e da solidariedade. Ora, os fins da política externa soviética eram identificados através de considerações de ordem doutrinária e a partir de uma visão dinâmica e dialética da história, com foco na eficácia a longo prazo, isto é, no impacto cumulativo, e não nos sucessos isolados. As medidas ativas soviéticas utilizaram-se, em larga escala, dos meios culturais e acadêmicos para a manipulação da opinião pública mundial. As sementes desse projeto de longo prazo permaneceram após o fim da Guerra Fria e hoje estão dando frutos, como são por exemplo o predomínio do relativismo moral e a desconstrução da cultura ocidental através da perda dos referenciais históricos e do fenômeno da pós-modernidade. É essencial, portanto, que prestemos atenção ao que estamos valorizando esteticamente e ao que está sendo ensinado nas escolas e universidades. Caso contrário, não recuperaremos a consciência de nossa identidade e não conseguiremos definir quais são as nossas prioridades para a consolidação de um mundo realmente estável e próspero.
Cinco anos depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, devemos nos perguntar: será que hoje estamos realmente mais seguros? Há boas perspectivas para o futuro, mas a sua realização dependerá de como vamos lidar com as dificuldades do momento presente. A intensificação do processo de globalização econômica está contribuindo para a diminuição mundial das taxas de pobreza e para a convergência de rendas, isto é, ao contrário do que se diz com bastante freqüência e leviandade, a globalização não está aprofundado as desigualdades, muito pelo contrário. Ao mesmo tempo, os avanços científicos e tecnológicos estão abrindo possibilidades que podem proporcionar mais estabilidade, segurança e conforto à humanidade. Mas a segurança, em sentido amplo, depende também de quão fortes e coesas são as nossas sociedades diante dos fatores que nos ameaçam.
Há uma tentativa de caracterizar como sabedoria convencional ou sentimento comum que as ações que têm sido realizadas no combate global ao terrorismo apenas agravam o problema. Assim, grande parte dos britânicos, por exemplo, consideram que o fato da Inglaterra ser aliada dos Estados Unidos na guerra contra o terrorismo é o que faz com que os ingleses sejam alvos dos radicais islâmicos. Essa falha de percepção evidencia uma perigosa falta de coesão social diante de uma ameaça comum à qual não se devem concessões e nem trégua. É verdade que o Ocidente tem feito pouco caso de sua identidade histórica, mas temos um modo de vida e o extremismo islâmico volta-se exatamente contra esse modo de vida, contra a valorização das liberdades, contra as expressões e iniciativas individuais. Devemos estar conscientes de que a permissividade moral é uma ameaça tanto para nós, que perdemos a nossa verdadeira identidade, quanto para os povos orientais, que se sentem ameaçados em suas tradições, mas não podemos fechar os olhos ao fato de que quem nos odeia enquanto Ocidente também nos odeia pelo que conquistamos e pelo que construímos, pelo nosso apego à liberdade e à democracia.
É necessário, portanto, que tenhamos uma liderança sólida que promova estabilidade ao sistema internacional ao mesmo tempo em que consolida os nossos verdadeiros valores, interna e externamente. Essa liderança deve agir com espírito de subsidiariedade e de cooperação quando a situação possibilita a harmonia de interesses, mas também com firmeza e resolução diante de situações de conflito e de ameaça. Seguindo o exemplo do Papa João Paulo II, não devemos ter medo e devemos assumir o que somos, conscientes de nosso lugar no mundo e resolutos a impedir a repetição de atos como os atentados que testemunhamos, há cinco anos, com estarrecimento e perplexidade. Devemos construir o futuro sem deixar de atentar para o presente e, sobretudo, sem jamais abandonar o legado de nossos antepassados, pois é a eles que devemos o que somos hoje.
Claudio Téllez
(publicado originalmente no CIEEP)
por Anónimo @ 9/12/2006 12:47:00 da tarde
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