O meu amigo M.
Início de 1975:
M. vivia num lugar de nome Boa Entrada, perdido no mato perto da Gabela, Kuanza Sul. Aparentemente houve ordens para que os civis portugueses fossem desarmados e alguém encarregou militares do MPLA, UNITA e FNLA de o fazer. Entraram três em casa de M. um de cada movimento, uniformizados e armados inclusive com um RPG e granadas. Revistaram toda a casa. Duas caçadeiras estavam escondidas no quarto de M. atrás de um roupeiro mas não foram encontradas. Após uma hora de tensão, o militar da UNITA, menos agressivo, convenceu os outros dois que não havia nada.###
Julho de 1975:
M. tinha acabado a 4ª classe e como de costume toda a família (pais, uma irmã de nove anos e um irmão de dois) viajou de férias para Novo Redondo (hoje Sumbe), capital do distrito, para casa de uns tios que lá viviam. No dia seguinte à chegada, M. foi sozinho a pé, ao Governo Civil, buscar o diploma da 4ª classe. Era um edifício cor-de-rosa, com palmeiras em frente. Ao sair quando descia as escadas, o céu caiu-lhe na cabeça. Estrondos e explosões sucediam-se, o som de tiros arrancou ensurdecedor. Correu para casa dos tios que ficava relativamente perto. Entrou a correr e deu com toda a família em pânico (o pai de M. tinha saído de carro logo no início da confusão á sua procura e regressou com um buraco de bala no tejadilho do Peugeot 404). Foram todos para um quarto que dava para as traseiras onde parecia aos adultos que estariam mais seguros. Ficaram alguns dias nesse quarto. Alguém disparava morteiros do quintal junto à janela. Durante vários dias, duas famílias com seis crianças, moveram-se em silêncio e falaram em sussurros no meio do caos das explosões, dos tiros e do metralhar incessante. Os adultos tapavam a boca aos mais pequenos quando estes choravam. Os sons da guerra foram esmorecendo e dias depois fez-se silêncio. Prepararam sacos com a roupa que tinham e dirigiram-se à saída. Correram para dois carros e pelo meio de ruas irreconhecíveis, casas esburacadas e a fugir de crateras chegaram junto ao Governo Civil. M. viu-se de novo dentro do 404, no meio de uma fila interminável de automóveis. Foram para Nova Lisboa (Huambo), passaram por check points cheios de soldados armados até aos dentes, até ao Aeroporto da cidade. Dormiram alguns dias no chão enquanto tentavam lugares num voo para Luanda. Lá chegados, o cenário dantesco de Novo Redondo repetia-se: tiros, explosões e projécteis tracejantes que há noite coloriam o ar de vermelho. Ficaram em casa de familiares até conseguirem passagens para Lisboa.
M. é um cínico desencantado, sabe que a guerra pode ser uma razão de sobrevivência pura e simples e isso chega-lhe. Quem não valoriza a vida humana, não pode queixar-se da guerra.
Falta-me o talento para contar a história como M. o faz, mas partilho o cinismo desencantado.
por Helder Ferreira @ 7/24/2006 11:08:00 da tarde
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