pequena fuga
Uma dúvida sistemática que assalta todos os "liberais" com consciência é saber se o Liberalismo "resultaria". Até mesmo os que depositam a sua fé e estudos no funcionamento de uma sociedade liberal são confrontados regularmente com alguma angústia de não saber o que aconteceria se as suas visões fossem implementadas. Esta "fraqueza" decorre da tendência institiva de desejar o melhor para a sociedade, e pensar que a política deve ocupar-se de garantir felicidade. Mas o utilitarismo, tornado político, transforma-se em socialismo, uma ideologia que só sobrevive à custa da usurpação das liberdades individuais.
O liberalismo consiste precisamente em não determinar por doutrina o que é melhor para a sociedade, porque as pessoas sabem decidir o que é melhor para elas. Se o Estado assegurar a Justiça, a Ordem e a Soberania e se abstiver de usar de intervenção e coacção desnecessária, a sociedade tenderá a maximizar a felicidade comum— ou pelo menos terá todos os meios para isso.
Entre a visão e a aplicação ao mundo real vai uma grande distância. Certamente, não há concessões a fazer no que toca à concepção intelectual do ideal liberal. Mas porque o Liberalismo também é um modelo político, para que seja realidade é preciso conquistar os corações das pessoas. Há que usar de pragmatismo político. Insistir no "produto final" pode ser contraproducente porque exige uma mudança radical de mentalidades. O Liberalismo não deve ser implementado pela metade, diz-se, mas num regime democrático terá de ser sujeito ao gradual processo de concorrência com as ideias socialistas/estatistas.
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Prova-se facilmente que o Estado é ineficiente e atropela os direitos das pessoas. Contudo, continua a ser fácil imaginar como é que o Estado poderia resolver os problemas do país, com mais e mais poder; e continua difícil conceber como é que a sociedade deixada funcionar livremente poderia "tomar conta" das coisas. O medo do vazio e do desconhecido funciona contra a substituição de muitas funções estatais pelo mercado. É visível que o desaparecimento do Estado provocaria desequilíbrios imensos; o que não é visível é que esses mesmos desequilíbrios existem porque o Estado os mantinha artificialmente, e que a sua existência sufocava o aparecimento de alternativas privadas mais eficientes.
Imaginemos que o Estado declarava como "direito social" ter comida na mesa. Encarregava-se de produzir provisões para toda a população, gerindo a Agricultura nacional com extremada diligência e zelo. E apareciam uns malucos a defender o fim deste regime. "Acabar com a Alimentação Social? Nunca! Haverá fome para os pobres e fartura para os ricos!"— diriam muitos dos seus beneficiários.
Nós, que vivemos num mundo em que há liberdade de escolha que se traduz na existência dos mais variados restaurantes (das tascas e fast-foods aos de luxo), e em supermercados abastecidos com víveres vindos de toda a parte do mundo, nunca o aceitaríamos. Todos vimos a figura dos alemães de Leste quando passaram por cima do Muro, deslumbrados com a pujança do capitalismo alegadamente opressor. Hoje não têm saudades das senhas de racionamento.
Foi preciso uma revolução dramática para que a mudança de mentalidades tivesse acontecido na República Democrática Alemã, tão vasta que o país desapareceu. A RDA não era uma democracia, mas se fosse provavelmente ninguém aceitaria pacificamente a reforma "liberal". Haveria forma "gradual" do Estado garantir o tal "direito social" à comida? Podemos sugerir que o Estado financiasse o sistema em vez de o gerir. Daria dinheiro "público" às pessoas, para que tivessem possibilidade de comprar comida no mercado. Um "cheque-comida" se quisermos. Seria social e economicamente revolucionário, e pacífico.
O sistema de financiamento estatal não é um sistema liberal porque o Estado continua a redistribuir impostos. Mas é objectivamente melhor que um sistema de titularidade estatal, porque a liberdade das pessoas aumenta consideravelmente.
A esmagadora maioria das pessoas que vive em regimes onde este "direito social" não é garantido sabe que esta solução de compromisso é errada. O mercado livre funciona ainda melhor! É evidente que com esta atitude, seríamos todos classificados de "neoliberais". Mas a solução não deixa de estar errada por muito que nos "neo-classifiquem".
Não nos iludamos no conforto do "dever cumprido" de ter feito o suficiente, e com a candura com que propusemos acima o financiamento estatal do "direito social": lembremo-nos que foi uma cedência necessária para evitar "revoluções". Um sistema de financiamento dos "direitos sociais" até pode servir como bom regime de transição para um sistema liberal, mas no fim de contas estamos sempre melhor sem o Estado a dizer-nos o que é melhor para nós.
[ não tive tempo de preparar e publicar a 'pequena fuga' da semana passada— "Estado - Not in my back yard (2)"— que argumentava que as actividades de "Ordenamento do Território" e "Planeamento Regional e Urbano" são profundamente iliberais. Se a agenda política e blogosférica o permitir, este tema fica prometido para a próxima sexta-feira. ]
[ Entretanto este texto foi publicado na íntegra n'A Arte da Fuga. ]
por AA @ 3/17/2006 11:59:00 da tarde
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