That’s Entertainment
Uma das notícias que mereceu a atenção do comentarista Miguel Sousa Tavares no telejornal de ontem da TVI foi a decisão de retoma do programa de desenvolvimento de armas nucleares pela teocracia iraniana (não vale a pena perder tempo com eufemismos).
As considerações de Sousa Tavares sobre esta questão podem ser resumidas nos seguintes pontos: as negociações entre os representantes da troika europeia e os ayatollahs iranianos foram um fracasso (óbvio) e os EUA estão estrategicamente impedidos de considerarem um ataque militar ao Irão devido ao seu envolvimento no Iraque. Disto conclui Sousa Tavares que o “melhor” será esperar que os israelitas façam o “trabalho sujo” e executem uma operação militar preventiva, que desmantele os reactores nucleares iranianos e evite a necessidade futura de uma acção de preempção. ###
No seu comentário, Miguel Sousa Tavares menciona explicitamente uma operação semelhante levada a cabo pelas forças armadas israelitas, mas faz uma monumental confusão entre o Irão e o Iraque. Em 1981, Israel desencadeou uma operação militar extremamente arriscada e bem executada, que desmantelou o reactor nuclear iraquiano de Osirak. Este reactor era a peça central do programa nuclear iraquiano e — ironicamente – tinha sido bombardeado no ano anterior pelo Irão, no decurso da guerra que o opunha ao Iraque.
Não se trata de uma “simples” confusão entre países que não convém mesmo nada confundir. Tão pouco as minhas objecções ao teor das declarações do comentarista da TVI se resumem à sua eventual incapacidade de localizar num mapa Osirak (Iraque), Natanz, Bushehr ou Isfahan (Irão).
O que foi perfeitamente evidente é que Sousa Tavares não sabia do que estava a falar: defender a hipótese de um ataque militar preventivo às instalações nucleares iranianas é irreflectido e insensato.
Comecemos pelos eventuais problemas de Miguel Sousa Tavares com a geografia — política e humana. Só mesmo quem não tem ideia alguma sobre a localização dos reactores iranianos é que pode sugerir uma operação militar semelhante à de Osirak com a ligeireza com que Miguel Sousa Tavares o fez. De outro modo saberia que as centrais nucleares iranianas, ao contrário de Osirak, se situam perto de núcleos urbanos “densos” e que Isfahan é uma cidade com enorme importância histórica e cultural.
As localizações dos reactores não são “casuais” e um ataque militar preventivo teria consequências humanas e políticas profundamente diferentes da operação israelita em 1981. Os governantes norte-americanos não planeiam nenhum ataque militar ao Irão, não porque estarem “diminuídos” pelo envolvimento no Iraque — pelo contrário, a proximidade da presença militar americana simplificaria bastante a operação, mas porque têm um conhecimento muito maior sobre a realidade iraniana do que o evidenciado pelo comentarista da TVI.
Em primeiro lugar, conhecem as enormes dificuldades logísticas de uma operação bem sucedida e dispõem certamente de estimativas dos custos esperados, em termos humanos e em termos de condenação política. Em segundo lugar, sabem que uma decisão dessas não é consistente com a política defendida pela administração Bush, de democratização dos países islâmicos.
No Irão existem grupos políticos importantes que se opõem à tirania dos ayatollahs e que esperam dos EUA (e da União Europeia) apoio político, não retaliação militar que lhes comprometa a base de apoio popular.
O que fazer relativamente ao Irão? A ideia mais razoável nesta fase é forçar a questão a ser discutida no Conselho de Segurança da ONU, tal como defende Israel e sugere George Perkovitch, do Carnegie Endowment for International Peace. No mínimo, a Rússia e a R. P. da China terão de assumir o veto, deixando de poder disfarçar a cumplicidade que efectivamente têm com a teocracia iraniana. O Irão tem conseguido até agora manobrar brilhantemente em termos diplomáticos, dividindo os ocidentais, negociando com os aliados chineses e russos e usando a ineficácia da IAEA para obter o “recurso vital” para o sucesso do programa de armamento nuclear: tempo.
É provável que o Irão consiga produzir armas nucleares. Ao contrário do que é geralmente assumido, não se trata de uma ambição exclusiva da teocracia iraniana (as primeiras tentativas foram feitas por Reza Pahlevi) nem representa um risco imediato de segurança internacional: o valor da arma nuclear é político — uma arma de dissuasão, uma protecção adicional ao poder político da teocracia iraniana contra (reais ou imaginárias) ameaças externas.
O maior risco de um Irão nuclear é a possibilidade de transferência — a cedência de uma arma nuclear a grupos terroristas. Mas esse risco existe desde que o Paquistão e — presume-se — a Coreia do Norte se tornaram “regimes nucleares”. O risco adicional envolvido na nuclearização do Irão é relativamente pequeno. Um ataque poderia (ou não) resolver o problema, mas inviabilizaria todos os esforços de mudança de regime. Países como a África do Sul ou o Brasil têm condições tecnológicas para produzir armas nucleares. Ao contrário do que se passa com o Irão, essa possibilidade, que até já foi concretizada pela África do Sul, não é vista como um risco imediato e grave à segurança internacional: a verdadeira ameaça à segurança é a tirania dos ayatollahs.
A realidade política internacional já é suficientemente complicada e perigosa para dispensar leviandades destas em prime-time. Nos mesmos comentários, Miguel Sousa Tavares protestava contra a “degradação” do serviço de empresas como a EDP, perguntando para quê alterar a titularidade do respectivo capital, privatizando-a (muito) parcialmente para depois os consumidores ficarem “pior servidos”. Se a sugestão implícita é que o simples facto de se tratar de uma entidade privada não fornece qualquer garantia de qualidade, estou plenamente de acordo. Os comentários de Miguel Sousa Tavares ontem à noite na privada TVI são testemunho evidente disso mesmo e há pior, muito pior.
por FCG @ 1/11/2006 02:53:00 da tarde
<< Blogue