14.3.05

A IGREJA e os SISTEMAS ECONÓMICO-SOCIAIS

  • a Igreja rejeitou as ideologias totalitárias e ateias, associadas, nos tempos modernos ao «comunismo» e ao «socialismo» (Catecismo nº2425).
  • Considerou o socialismo, mesmo depois de abandonada a luta de classes e oposição à propriedade privada, incompatível com o Catolicismo (“Whether considered as a doctrine, or an historical fact, or a movement, Socialism, if it remains truly Socialism, even after it has yielded to truth and justice on the points which we have mentioned, cannot be reconciled with the teachings of the Catholic Church because its concept of society itself is utterly foreign to Christian truth.” – Quadragesimo Anno nº117)
  • Condenou o ‘o socialismo cristão’: “Religious socialism, Christian socialism, are contradictory terms; no one can be at the same time a good Catholic and a true socialist.” (Quadragesimo Anno, nº120)
  • Criticou o ‘neoliberalismo’ da américa latina porque, “apoiado numa concepção economicista do homem, considera o lucro e as leis de mercado como parâmetros absolutos a prejuízo da dignidade e do respeito da pessoa e do povo. Por vezes, este sistema transformou-se numa justificação ideológica de algumas atitudes e modos de agir no campo social e político que provocam a marginalização dos mais fracos.” (Ecclesia in America, nº56).


Tendo em conta que para realizar ou garantir uma “economia que esteja ao serviço da pessoa e do bem comum”, são moralmente possíveis diversas estratégias, convirá verificar até que ponto ou em que medida o capitalismo é um sistema económico-social compatível com a doutrina social da Igreja

Pretende-se de seguida identificar o juízo da Doutrina Social da Igreja sobre o Capitalismo actual.

O PAPA e o CAPITALISMO ACTUAL

No Catecismo, logo a seguir à total rejeição do «comunismo» e do «socialismo», pode ler-se que a Igreja “recusou, na prática do «capitalismo», o individualismo e o primado absoluto da lei do mercado sobre o trabalho humano. Regular a economia...só pela lei do mercado é faltar à justiça social, «porque há numerosas necessidades humanas que não podem ser satisfeitas pelo mercado»” (Catecismo nº2425).

Portanto, ao contrário do «comunismo» e do «socialismo» que são rejeitados, o «capitalismo» é parcialmente rejeitado. Ou antes, é rejeitado uma certa forma de «capitalismo»como resulta da leitura da Encíclica Centesimmus Annus.

Na Encíclica Centesimmus Annus (nº42), o Papa distingue dois tipos de capitalismo:
“... pode-se porventura dizer que, após a falência do comunismo, o sistema social vencedor é o capitalismo e que para ele se devem encaminhar os esforços dos Países que procuram reconstruir as suas economias e a sua sociedade? É, porventura, este o modelo que se deve propor aos Países do Terceiro Mundo, que procuram a estrada do verdadeiro progresso económico e civil?

...Se por «capitalismo» se indica um sistema económico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da consequente responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no sector da economia, a resposta é certamente positiva, embora talvez fosse mais apropriado falar de «economia de empresa», ou de «economia de mercado», ou simplesmente de «economia livre».

Mas se por «capitalismo» se entende um sistema onde a liberdade no sector da economia não está enquadrada num sólido contexto jurídico que a coloque ao serviço da liberdade humana integral e a considere como uma particular dimensão desta liberdade, cujo centro seja ético e religioso, então a resposta é sem dúvida negativa.

Tantas multidões vivem ainda agora em condições de grande miséria material e moral. A queda do sistema comunista, em tantos países, elimina certamente um obstáculo para enfrentar de modo adequado e realístico estes problemas, mas não basta para resolvê-los. Existe até o risco de se difundir uma ideologia radical de tipo capitalista, que se recusa mesmo a tomá-los em conta, considerando a priori condenada ao fracasso toda a tentativa de os encarar e confia fideisticamente a sua solução ao livre desenvolvimento das forças de mercado.”
Alguns autores referem-se estes dois modelos distinguindo entre ‘economia de mercado’ e ‘sociedade de mercado’.

Em conclusão: (1) o Papa gosta do Capitalismo inserido num estado de direito democrático e envolvido por uma determinada ‘ecossistema’ moral; (2) o Papa não gosta do libertarianismo anarco-capitalismo. Portanto, é perfeitamente compatível com a doutrina a defesa do capitalismo nos termos acima referidos.

Caros Insurgentes, podemos ser Católicos e defensores do Capitalismo. O Capitalismo não será o único sistema compatível com a doutrina social da Igreja – é possível fazer uma leitura ‘social-democrata’ da Encícilia Centesimmus Annus, p.ex. -, mas não foi ‘excomungado’.

A INTERVENÇÃO DO ESTADO NUMA ‘ECONOMIA DE MERCADO’

Será possível identificar na doutrina social da Igreja linhas de orientação quanto ao grau e ao tipo de intervenção do Estado numa ‘economia de mercado’? No contexto de uma economia de mercado, existem formas de intervenção que são incompatíveis com a doutrina ?

Desde logo, o Catecismo alerta para os perigos da excessiva socialização:
”...a socialização também oferece perigos. Uma intervenção exagerada do Estado pode constituir uma ameaça à liberdade e às iniciativas pessoais (Catecismo nº1884)

E para fazer face a estes perigos, a doutrina da Igreja elaborou o princípio dito da subsidiariedade. Este princípio é um dos dois pilares da doutrina social da Igreja, sendo que o outro é o princípio da solidariedade. Segundo o princípio da subsidiariedade:

”... uma sociedade de ordem inferior não deve interferir na vida interna duma sociedade de nível inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la, em caso de necessidade, e ajudá-la a coordenar a sua acção com a dos demais componentes sociais com vista ao bem comum” (Catecismo nº1884). “Segundo o princípio da subsidiariedade, nem o estado nem qualquer sociedade mais abrangente devem substituir-se à iniciativa e à responsabilidade das pessoas e dos corpos intermédios” (Catecismo nº1894). “O princípio da subsidiariedade opõe-se a todas as formas de colectivismo e marca os limites da intervenção do Estado. Visa harmonizar as relações entre os indivíduos e as sociedades...” (Catecismo nº1885)

Por outro lado, o Papa identifica 5 funções diferentes para o Estado numa economia de mercado:

  1. Como resulta da anterior citação sobre o Capitalismo, uma das principais funções que o Estado deve desempenhar na economia é a criação e/ou manutenção de um enquadramento institucional, jurídico e político que garanta a liberdade individual e a propriedade, além de uma moeda estável e serviços públicos eficientes (Centesimmus Annus nº48).

    Para quem não seja anarquista, esta função não será excessivamente polémica.
  2. ”Uma outra função, é a de vigiar e orientar o exercício dos direitos humanos, no sector económico”. Mas neste campo, o Papa alerta para o facto de que a “primeira responsabilidade não é do Estado, mas dos indivíduos e dos diversos grupos e associações em que se articula a sociedade. O Estado não poderia assegurar directamente o direito de todos os cidadãos ao trabalho, sem uma excessiva estruturação da vida económica e restrição da livre iniciativa dos indivíduos. Contudo isto não significa que ele não tenha qualquer competência neste âmbito, como afirmaram aqueles que defendiam uma ausência completa de regras na esfera económica. Pelo contrário, o Estado tem o dever de secundar a actividade das empresas, criando as condições que garantam ocasiões de trabalho, estimulando-a onde for insuficiente e apoiando-a nos momentos de crise.” (Centesimmus Annus nº48)).

    A formulação desta função do Estado exclui aqueles que consideram que o Estado é responsável por arranjar emprego para todos, e todos aqueles que acham que o mercado de trabalho deve ser completamente desregulamentado e que a intervenção do Estado na economia em momentos de crise não deve existir. Dentro destes limites, existe espaço para um conjunto de políticas variadas - mais liberais ou mais intervencionistas -, mas, há partida, todas seriam compatíveis com a doutrina.

  3. ”O Estado tem também o direito de intervir quando situações particulares de monopólio criem atrasos ou obstáculos ao desenvolvimento” (Centesimmus Annus nº48)) .

    Uma ‘política de regulação e concorrência’ não é incompatível com a doutrina. Mas a Encíclica fala de ‘direito’ e não de obrigação, pelo que existem outras formas de actuação que, aparentemente, seriam igualmente compatíveis com a doutrina.

  4. O Papa refere igualmente que o Estado “pode desempenhar” o que designa por funções de suplência: intervenções “em situações excepcionais, quando sectores sociais ou sistemas de empresas, demasiado débeis ou em vias de formação, se mostram inadequados à sua missão. Estas intervenções de suplência, justificadas por urgentes razões que se prendem com o bem comum, devem ser, quanto possível, limitadas no tempo, para não retirar permanentemente aos mencionados sectores e sistemas de empresas as competências que lhes são próprias e para não ampliar excessivamente o âmbito da intervenção estatal, tornando-se prejudicial tanto à liberdade económica como à civil” (Centesimmus Annus nº48)) .

    De novo, a possibilidade de desempenhar este tipo de funções não é incompatível com a doutrina, embora, aparentemente, não sejam obrigatórias (“pode desempenhar”). O desempenho deste tipo de funções justificadas por “razões urgentes” é rodeado por um conjunto de restrições associados à garantia da liberdade.

  5. Um outro conjunto de funções do Estado são as ‘funções sociais’. Dedica-se a próxima secção a este tipo de políticas.


A CRÍTICA do ‘WELFARE STATE’ e o ELOGIO DA SOCIEDADE CIVIL

Ao referir-se às funções sociais, o Papa critica de imediato o ‘Welfare State’:
”Assistiu-se, nos últimos anos, a um vasto alargamento dessa esfera de intervenção, o que levou a constituir, de algum modo, um novo tipo de estado, o «Estado do bem-estar». Esta alteração deu-se em alguns Países, para responder de modo mais adequado a muitas necessidades e carências, dando remédio a formas de pobreza e privação indignas da pessoa humana. Não faltaram, porém, excessos e abusos que provocaram, especialmente nos anos mais recentes, fortes críticas ao Estado do bem-estar, qualificado como «Estado assistencial». As anomalias e defeitos, no Estado assistencial, derivam de uma inadequada compreensão das suas próprias tarefas. Também neste âmbito, se deve respeitar o princípio de subsidiariedade: uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua acção com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum.

Ao intervir directamente, irresponsabilizando a sociedade, o Estado assistencial provoca a perda de energias humanas e o aumento exagerado do sector estatal, dominando mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de servir os usuários com um acréscimo enorme das despesas. De facto, parece conhecer melhor a necessidade e ser mais capaz de satisfazê-la quem a ela está mais vizinho e vai ao encontro do necessitado. Acrescente-se que, frequentemente, um certo tipo de necessidades requer uma resposta que não seja apenas material, mas que saiba compreender nelas a exigência humana mais profunda. Pense-se na condição dos refugiados, emigrantes, anciãos ou doentes e em todas as diversas formas que exigem assistência, como no caso dos toxicómanos: todas estas são pessoas que podem ser ajudadas eficazmente apenas por quem lhes ofereça, além dos cuidados necessários, um apoio sinceramente fraterno.” (Centesimmus Annus nº48)).
Esta crítica é positivamente ‘neoliberal’...

Mas então, qual é a solução não estatal que é compatível com a doutrina ?

É a sociedade civil:
” O indivíduo é hoje muitas vezes sufocado entre os dois pólos: o Estado e o mercado. Às vezes dá a impressão de que ele existe apenas como produtor e consumidor de mercadorias ou então como objecto da administração do Estado, esquecendo-se que a convivência entre os homens não se reduz ao mercado nem ao estado...” (Centesimmus Annus nº49)
O Papa refere um conjunto de instituições que deverão assegurar o cumprimento destas funções eventualmente com o auxílio do Estado:
  • A Igreja.
  • A Família.
  • Outras sociedades intermédias que constróem específicas redes de solidariedade.
Logo, pretender que a assistência aos pobres ou a resoluções dos problemas sociais seja realizada exclusivamente ou mesmo maioritariamente pelo Estado, não é compatível com a doutrina, visto que não cumpre os seus objectivos de solidariedade e viola o princípio da subsidiariedade.