Ideologias imunes à verdade
O comunismo foi o terreno fértil onde cresceu a pseudo-ciência de Lysenko, um adepto do Lamarckismo, uma teoria da evolução das espécies que afirmava que os traços adquiridos em vida dos indivíduos eram transmitidos aos seus descendentes. O comunismo não era compatível com a teoria da evolução de Darwin, com a sua ideia chave da sobrevivência dos indivíduos mais adaptados, que era vista como uma ideia burguesa, metaforicamente justificando a divisão de classes e o capitalismo.
É comum as ideologias terem problemas com a ciência. O feminismo também os teve e continua a ter, embora agora generalizados pelo seu sucesso, em tantos aspectos essencial. Tornou-se anátema falar da diferença entre os sexos. É proibido mencionar o assunto, excepto para negar veementemente que existam quaisquer diferenças relevantes. Por vezes, no entanto, o discurso feminista muda de táctica. Em vez de negar as diferenças, que poderiam explicar muitas das disparidades sociais entre homens o mulheres, passa a enaltecer as características únicas femininas, o seu carácter intrinsecamente não violento, as vantagens que teria uma política feminina, como o mundo seria tão mais pacífico com mais mulheres no poder.
Este último tipo de argumentação, provavelmente o menos desacertado, é relativamente infrequente. De longe mais comum é a negação exaltada da diferença. O último caso ocorreu com Lawrence H. Summers, Presidente da Universidade de Harvard, que teve o desplante, imagine-se, de sugerir, com múltiplas ressalvas, que talvez houvesse uma explicação genética para o facto de haver mais homens do que mulheres nas ciências e na engenharia, e de essa maioria ser ainda mais acentuada quando se atinge o topo da escala nessas áreas de actividade, particularmente, como seria de esperar, entre os professores das melhores universidades.###
A reacção às suas palavras foi tão violenta que Larry Summers acabou por se retratar, numa lamentável carta (bem demonstrativa da condição humana) publicada pouco depois de ter proferido palavras supostamente tão ofensivas para a dignidade da mulher. O maior defensor de Larry Summers acabou por ser o peso-pesado Steven Pinker, autor do magnífico "The Blank Slate: The Modern Denial of Human Nature"Steven Pinker, The Blank Slate: The Modern Denial of Human Nature, Penguin Putnam, 2002. ISBN: 0670031518, já por mim referido várias vezes no Picuinhices. A defesa tomou a forma de um artigo muito recomendável saído no The New Republic Online e intitulado "The Science of Difference".
Este caso começou no início de Janeiro, tendo agora chegado a Portugal pela pluma caprichosa de Clara Ferreira Alves, que no Expresso desta semana deu à sua coluna o título irónico de "O Mulherio Não Tem Jeito". O tom é jocoso e a ignorância pesporrente é verdadeiramente extraordinária. Para ela não pode haver outra explicação senão a discriminação e o facto de as mulheres terem ainda, injustamente, o grosso do trabalho doméstico e de cuidado dos filhos para realizar. Não, para ela é evidente que não existem diferenças genéticas relevantes. O seu pensamento é imune à ciência, à verdade. Crucifique-se, mesmo, quem se atrever a estudar o assunto com espírito aberto.
Infelizmente para Clara Ferreira Alves, a verdade é que aparentementeNote-se que eu não sei se as explicações genéticas são verdadeiras. Que são plausíveis, não há dúvida, pelo menos para quem retire a pala do politicamente correcto dos olhos. Que são prováveis, dados os estudos existentes, também é evidente. É só pela ausência de certeza que uso o advérbio "aparentemente" no texto., e em média, os homens são piores empatizadores (se me permitem o neologismo) do que as mulheres, sendo estas piores sistematizadoras do que os homens. Simon Baron-Cohen, professor de Psicologia Experimental no Trinity College, Cambridge, e director do Autism Research Center, tem vindo a estudar este assunto em profundidade e argumenta que, grosso modo, se pode falar num cérebro masculino e num cérebro femininoSimon Baron-Cohen, The Essential Difference: The Truth about the Male and Female Brain, Perseus Books Group, 2003. ISBN: 0738208442. As publicações científicas de Baron-Cohen também estão disponíveis.. O cérebro masculino extremo corresponderia ao autismo, distinto do normal pela sua empatia mínima e capacidade de sistematização máxima, no caso do autismo funcional, tendo como grau intermédio, já patológico, os possuidores do Síndroma de Asperger.
A capacidade média de sistematização masculina parece, pois, ser superior à feminina, o que só por si justificaria as disparidades em causa. Mas, como Larry Summers apontou, a distribuição desta capacidade parece ter um desvio padrão maior entre os homens, mais desiguais entre si, variando do imbecil ao génio, do que entre as mulheres, mais semelhantes umas às outras. Pinker, por seu lado, aponta, repetindo o que já havia dito no livro citado, que qualquer que seja a verdade acerca deste caso, nada se pode concluir do ponto de vista moral. Ao contrário do que o politicamente correcto supõe, demonstrar cientificamente diferenças relevantes entre o cérebro masculino e feminino não justifica nem nunca justificará qualquer discriminação com base no sexo. Explica, isso sim, porque é que uma política de contratação de professores puramente baseada no mérito científico pode levar a uma grande disparidade entre os sexos nas áreas da ciência e da engenharia.
A Clara Ferreira Alves sugere-se que faça algum trabalho sistemático de investigação e que tome doses consideráveis de cepticismo antes de escrever. E que tenha menos pressa a tentar desmascarar quem não tem qualquer máscara.
P.S. Esta entrada é dedicada a José Sócrates.
por Manuel Menezes de Sequeira @ 3/12/2005 09:10:00 da tarde
<< Blogue