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Este livro contém cerca de uma dezena de artigos de opinião publicados entre 11 se Setembro de 2001 e 30 de Novembro de 2002, incluindo o texto de uma entrevista radiofónica realizada no mesmo período, bem como extractos de um depoimento escrito a publicar no início de 2003.###

Nenhum dos trabalhos aqui publicado é inédito – salvo o prefácio e a conclusão.

Pareceu útil, no entanto, reuni-los todos em livro e dá-los à estampa, quer porque tratam todos da situação de crise internacional em que temos vivido desde o 11 de Setembro de 2001 e por causa dele, quer porque a abordagem do assunto contém alguma originalidade.

Na verdade, entre a direita pró-americana que aplaude incondicionalmente a política externa e de segurança nacional do presidente Bush, e a esquerda antiamericana que condena irremediavelmente tudo quanto a América faz ou deixa de fazer, tenho-me situado numa linha intermédia (quiçá, centrista) que se caracteriza por dois elementos fundamentais:

– Um sentimento básico, estrutural, permanente, de amizade e admiração pelos EUA;

– Uma atitude crítica bastante forte, na conjuntura actual, contra a política externa e de segurança nacional do Presidente George W. Bush.

Com efeito, pode ser-se estruturalmente pró-americano e conjunturalmente anti-Bush. Pretender, como têm dito alguns dos meus críticos, que rejeitar a política externa e de segurança nacional de Bush é ser antiamericano é uma atitude mental muito próxima daqueles que, durante o Estado Novo, afirmavam que quem era anti-salazarista era necessariamente antipatriota ou mau português.

A verdade é que, em Democracia, pode ser-se, no plano interno, contra um Presidente ou contra um Governo sem se ser antipatriota; e, no plano das relações internacionais, pode discordar-se de certas políticas seguidas por determinados governos sem se ser inimigo ou mau amigo do respectivo país.

O direito à crítica, fruto da liberdade de opinião, e o direito à oposição, corolário da liberdade de posicionamento político, são direitos que não existem em ditadura, mas que fazem parte essencial das liberdades democráticas. É tão legítimo, numa democracia, ser a favor do Governo como ser a favor da oposição: ambas as atitudes são legítimas e contribuem para o bem comum. Ninguém exprime melhor essa filosofia do que os ingleses, que falam em Her Majesty’s Government e na Her Majesty’s Oposition. O que quer dizer que Governo e oposição, como elementos essenciais da democracia, são ambos acolhidos e legitimados como servidores da Coroa, expressão e símbolo da unidade nacional.

O mesmo se passa, mutatis mutandis, no plano internacional. Qualquer pessoa pode criticar a política externa do Presidente norte-americano sem que isso permita dizer, automaticamente, que essa pessoa é antiamericana; não é por se criticar, por hipótese, o liberalismo conservador do Governo francês que se é, necessariamente, antifrancês; nem é ser antigermânico criticar a política europeia do chanceler alemão.

Pode-se gostar muito de um país, do seu povo, da sua história, das suas instituições, dos seus êxitos e vitórias contra a adversidade, e no entanto discordar desta ou daquela política de um ou outro dos seus governos.

A não ser assim, se um europeu que critica a política externa e de segurança nacional do Presidente Bush é necessariamente antiamericano, então isso significará que já estaremos, hélas!, a resvalar para uma situação em que a Europa tem a sua «soberania limitada» pela hegemonia dos EUA, tal e qual como a Polónia, a Hungria, a Checoslováquia e os restantes países do «Pacto de Varsóvia» foram declarados pelo Presidente soviético Brejnev como «países de soberania limitada», que não tinham o direito de criticar a União Soviética, por esta ser o país líder do bloco soviético antiocidental, nem de seguir uma linha política diferente da aprovada por Moscovo.

Pessoalmente, considero que ainda não somos – nós, países europeus – países de soberania limitada, colocados sob a tutela e superintendência dos Estados Unidos da América. Nem queremos ser. Pelo menos, eu não quero. Quero que a Europa, unida e forte, seja amiga e aliada da América – mas não seja seguidista, possa criticar e critique o que achar mal nas posições internacionais assumidas pela América, e tenha o direito de dizer «não» quando estiver em desacordo.

Desejo uma aliança entre iguais, não uma parceria com um sócio dominante e sócios minoritários obrigados a segui-lo. O Presidente Bush disse há dias, na cimeira de Praga, que «se decidisse desencadear uma guerra contra o Iraque, consultaria os seus aliados e esperava que eles o acompanhassem».

Ora isso não é uma parceria entre iguais. Sê-lo-ia se, antes de tomar as suas decisões mais graves, o Presidente norte-americano consultasse os seus aliados europeus para todos decidirem, em conjunto, o que fazer a seguir. Mas o Presidente Bush já se permite olhar para nós, europeus, «de cima para baixo». O que ele diz é: nós decidimos sozinhos; depois informaremos os nossos aliados; pressioná-los-emos a seguirem connosco o nosso caminho; se não aceitarem, avançaremos sozinhos.

É isto uma parceria? É isto uma aliança entre iguais? É isto respeitar o princípio da igualdade de direitos dos Estados? A meu ver, não é.

Podem retorquir-me que a América é mais forte, não precisa para nada dos europeus e, portanto, tem o direito de decidir sozinha as suas políticas e de as executar sem os aliados, se estes não aceitarem a liderança americana.

Respondo que essa [sic] é o ponto de vista preconizado pelo actual Presidente americano e pela maioria da sua administração; mas não é a concepção que mais interessa à Europa e ao resto do mundo.

Os EUA podem ter ambição desmedida de querer mandar nos seus aliados; estes é que devem ter a coragem e a espinha dorsal suficientes para não se sujeitarem a ser mandados.

Infelizmente, a época actual conjuga uma América muito forte, mas errada nas suas opções internacionais, com uma Europa muito fraca, que apenas esboça tímidas críticas mas não é capaz de dizer «não» quando chega a hora da verdade. É assim que se começa, normalmente, a descer o plano inclinado da conciliação ao seguidismo, deste ao servilismo, e deste último à servidão.
*
Também tenho sido, acusado de ter virado à esquerda, com tanta crítica aos americanos. É esse o preço que tem de pagar, em Portugal, uma pessoa que gosta de pensar livremente pela sua cabeça – e que por isso não alinha sistematicamente com as posições de direita, nem considera que signifique ser de esquerda tomar posições idênticas às que, em certas matérias, são tomadas, por motivos bem diversos, por uma parte da esquerda.

O Presidente Chirac discorda, em nome da França, da ideia americana de um ataque imediato ao Iraque: passa a ser, por isso, um homem de esquerda?

O papa João Paulo II apela ao mundo (quer dizer: aos EUA) para que procurem evitar mais uma dolorosa guerra no Médio Oriente: passa a ser considerado, por isso, um Papa esquerdista?

O General Bent Scowcroft, um conservador americano que foi assessor e amigo muito próximo do Presidente Bush-pai, critica abertamente a linha política seguida no plano internacional pelo presidente Bush-filho. Tornou-se esquerdista? Mudou do Partido Republicano para o Partido Democrata. [sic] O general De Gaule, quando criticava a política externa norte-americana, passava a ser um homem de esquerda? Começava logo a ser atacado pela direita e louvado pela esquerda? Santa ingenuidade…

De Gaulle criticava os EUA em nome do nacionalismo francês – no que era coerente com as suas opções de direita.

Hoje, muitos conservadores e liberais europeus criticam a política externa americana em nome da autonomia soberana dos seus países e da Europa unida – no que são coerentes com as suas opções ideológicas, que nada têm a ver com o socialismo ou o marxismo.

É preciso sofrer de grande miopia política para não perceber que a dicotomia «direita/esquerda» tem a ver com problemas internos de política económico-social, e não com grandes questões da política externa, sobretudo a partir do momento em que o mundo deixou de estar dividido em dois grandes blocos ideológicos.
*
De todas as afirmações por mim feitas sobre a crise mundial em que vivemos depois do 11 de Setembro, aquela que provocou mais ondas de choque, chegando a merecer a crítica de alguns amigos mais próximos, foi a que fiz no artigo «A extrema-direita no governo dos EUA», de 12 de Setembro de 2002.

Não fiz essa afirmação de ânimo leve, mas muito de caso pensado: é que, quando vivi durante um ano em Nova Iorque, como Presidente da Assembleia Geral da ONU, apercebi-me (sem margem para dúvidas) de que havia uma extrema-direita legal na América, a qual correspondia, essencialmente, à ala mais radical do Partido Republicano. Agora, essa facção ganhou a Presidência dos EUA, no ano 2000, e domina maioritariamente o governo americano: são seus principais representantes, além do próprio Bush-filho, o Vice-Presidente Dick Cheney, o Secretário da Defesa Donald Rumsfeld e a Secretária Nacional de Segurança Condoleeza Rice. Do outro lado, quase sozinho como moderado, está apenas Colin Powell.

Porque é que eu chamo àquele grupo de pessoas «políticos de extrema-direita»? Por várias razões.

Primeira razão: são nacionalistas exacerbados, que advogam não dever o seu país respeitar o Direito Internacional, do qual só extraem direitos para os EUA e deveres para o resto do mundo. O mesmo pensavam e faziam o fascismo italiano e o nazismo alemão, na primeira metade do século XX.

Segunda razão: acreditam sinceramente que a missão história do seu país, no século XXI, é controlar e dominar o mundo, espalhando e impondo por toda a parte o american way of life. O mesmo pensava e tentou Hitler, embora por razões racistas, com a sua Deutschland über alles!

Terceira razão: desprezam em absoluto a ONU, que não consideram uma organização supranacional destinada a (tentar) garantir a paz e a segurança internacionais, mas uma estrutura que só interessa, e só deve ser apoiada e financiada, na medida em que funcionar como instrumento ao serviço dos objectivos da política externa americana. Desenvolvem uma campanha muito ampla, generosamente financiada, para denegrir a imagem da ONU perante a opinião pública, ameaçando abandonar a Organização se esta continuar a aprovar resoluções contrárias aos EUA. O mesmo pensava e dizia o doutor Salazar, que nunca reconheceu à ONU o direito de se pronunciar sobre a descolonização do Ultramar português, e desencadeou uma campanha de opinião sem precedentes para tentar denegrir a desacreditar a ONU, ameaçando mesmo que Portugal estaria «entre os primeiros países a abandoná-la».

Quarta razão: levaram os EUA a retirar-se da lista dos Estados que aceitam a jurisdição do Tribunal Internacional da Haia, com o argumento de que a América nunca deverá aceitar nenhuma decisão de qualquer organismo internacional que condene, reprove ou obrigue os EUA a fazer ou não fazer o que o Executivo ou Legislativo americanos não acharem bem. Assim pensaram e pensam, assim agiram e agem, todos os ditadores e extremistas que colocam a soberania nacional acima do Direito Internacional.

Quinta razão: recusam dar aos talibãs e guerreiros da Al-Qaeda o estatuto de «prisioneiros de guerra», que as Convenções de Genebra lhes garantem, com o argumento de que esses perigosos terroristas não são seres humanos, mas autênticos animais. O mesmo pensava Hitler dos judeus, dos ciganos, dos polacos, dos homossexuais e dos deficientes mentais ou físicos que mandou matar nas câmaras de gás.

Sexta razão: aconselharam o Presidente Bush a criar, por decreto do Poder Executivo (e não por lei do Congresso), tribunais especiais criados de propósito, após o 11 de Setembro, para julgar (e condenar) os indivíduos, americanos ou estrangeiros, acusados de serem terroristas, suspeitos da prática de actos de terrorismo, ou meramente auxiliares, directos ou indirectos, de qualquer acusado de ser terrorista. Assim pensava e agiu o Doutor Salazar, criando os tristemente célebres «tribunais plenários» para julgar (e condenar) os portugueses acusados ou suspeitos de serem comunistas ou de lhes darem apoio ou abrigo.

Sétima razão: apesar de a Constituição americana (a mais antiga do mundo, já com 225 anos de vida) estabelecer, de forma clara e firme, o princípio da separação entre as igrejas e o Estado, fazendo deste um Estado laico, eles pretendem voltar a impor que em todas as salas de aula das escolas oficiais haja na parede um crucifixo e seja rezada diariamente uma oração de inspiração cristã. O mesmo pensava e fez o Generalíssimo Franco, em Espanha, reeditando com dois séculos de atraso a antiga aliança pré-liberal entre «o trono e o altar».

Oitava razão: contra o disposto na Constituição americana, que garante como nenhuma outra, em termos praticamente ilimitados, a liberdade de expressão (free speech), levaram o Presidente Bush a pressionar – sabe-se lá por que meios – a imprensa de referência e os principais canais de televisão e [sic] não publicarem mensagens de Bin Laden, ou outros suspeitos de ligação a organizações terroristas, e a aceitar a censura prévia dessas mensagens por razões de segurança nacional. Assim pensavam e fizerem todos os ditadores nacionalistas europeus quando os seus países entravam em guerra, ou faziam campanhas de histeria colectiva contra um invisível «inimigo externo».

Nona razão: conduzem e orientam sempre a política orçamental do seu país no sentido de aliviar a pressão fiscal sobre os ricos, porque produzem riqueza e criam postos de trabalho, diminuindo significativamente as despesas sociais do Estado benéficas para os pobres, porque Cristo terá dito que «pobres sempre os tereis convosco» e porque as estatísticas demonstram, segundo eles, que todos os auxílios, ajudas, subsídios e pensões pagos aos pobres são gastos inúteis, uma vez que os utilizarão logo em álcool, tabaco, jogo ou drogas. Assim pensavam e fizeram todos os ditadores de extrema-direita que exerceram o poder, com particular destaque para Pinochet, aliás apoiado política e financeiramente pela referida ala mais radical do Partido Republicano.

Décima razão: porque estes homens e mulheres, em pleno século XXI, se consideram – e orgulhosamente o proclamam – como os herdeiros directos de [sic] melhor tradição «conservadora» americana, que não via mal nenhum na escravatura, que foi contra a sua abolição, que fez uma guerra civil em nome do direito à manutenção da escravatura nos Estados do Sul, que prolongou o seu racismo congénito em mil e um esquemas mais ou menos «legais» de segregação racial, que combateu Martin Luther King e os seus esforços não-violentos de consecução da igualdade racial, que esteve por trás da acção violenta e racista do Ku-Klux-Klan, e que ainda hoje, nos círculos judiciais que influencia, absolve polícias brancos que matam indivíduos de raça negra, mas condena com penas severas os negros apanhados a roubar fruta ou peças de vestuário barato em minimercados populares.

Como democrata que sou, não posso deixar de reconhecer a quem pensa da maneira acima exposta o direito de pensar como pensa e de livremente exprimir as suas ideias. Mas penaliza-me verificar que, após dois séculos de tolerância e moderação, a política americana caiu nas mãos dessa facção e se orienta hoje pela intolerância e pelo radicalismo.

Como escreveu recentemente Emmanuel Todd, com grande lucidez, «os Estados Unidos, até há bem pouco tempo factor de ordem internacional, surgem, cada vez com maior nitidez, como um elemento de desordem. (…) Os Estados Unidos estão em vias de se tornar um problema para o mundo. Estávamos mais habituados a vê-los como uma solução» (in Após o Império, Lisboa, Edições 70, 2002, pp. 9-11).

Não partilho da visão catastrófica deste autor, nem do seu (actual) antiamericanismo. Acho que os EUA se libertarão, mais depressa do que poderemos pensar, da influência governamental da sua «extrema-direita legal», tal como se libertaram do pesadelo do Vietname ou do Watergate. A juventude irreverente das universidades e a imprensa livre farão o seu trabalho – e melhores dias virão.

Mas lá que a conjuntura actual é particularmente perigosa, é. Conviria que os europeus relessem a História, recordassem os seus valores fundamentais, e fizessem da Europa unida um pólo de civilização exemplar, capaz de enfrentar e resistir aos riscos do radicalismo que hoje domina a política externa e de segurança nacional norte-americana.

Foi neste espírito, e com as convicções e ideias básicas antes expostas, que escrevi os dez textos agora publicados. Espero que se tornem ainda mais compreensíveis à luz do que digo neste prefácio.

Novembro de 2002

Diogo Freitas do Amaral